Na coluna passada, falei do mito da língua perfeita e do fato de que as mudanças são, em geral, tratadas como decadência. É interessante detalhar um pouco essa avaliação, para ser mais justo.
De fato, a mudança tratada como decadência é a mudança da qual se tem memória, ligada à variação, ou, dito de outra forma, relativa a construções que parecem desvios ou erros. Por exemplo, “se eu propor / fazer”, em vez de “propuser / fizer”.
Mas ninguém se lembra de mudanças que ocorreram há mais tempo. Por exemplo, na Carta de Caminha está escrito que “neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra”. Hoje, não nos baseamos mais na divisão do tempo determinada por práticas religiosas (Matinas, Laudes, Vésperas etc.), o que implica mudança de valores sociais, nem empregamos construções sintáticas como “houvemos vista de terra” (diríamos “avistamos / vimos terra”).
As mudanças que afetaram o verbo “haver” são, aliás, excelente exemplo. Como a escola confere grande valor ao uso existencial de “haver” (havia muitas pessoas), suas regras de concordância tornaram-se um lugar de avaliação do saber escolar: o verbo deve ser usado (condena-se “ter” nessa função) e não deve ser flexionado.
No entanto, é cada vez menos usado, sendo substituído pelo verbo “ter” (tinha muita gente nos rolês), que, curiosamente, é alvo das mesmas dúvidas em sua flexão (tinha / tinham muitas pessoas). O que se esquece (e ninguém reclama) é que o verbo “haver” já teve o sentido de ‘possuir’, como em “Este Rey Lear nom ouue filho, mas ouue três filhas” (Este rei Lear não houve [teve] filho, mas houve [teve] três filhas).
Na verdade, o próprio verbo “ter” está deixando de ser empregado na acepção ‘ser possuidor’, sendo progressivamente substituído nesse sentido pelo verbo “possuir” (“o livro possui cinco capítulos / a mãe possuía dois filhos”). Quase ninguém mais percebe esse fato, o que significa que a mudança já ocorreu. E ninguém reclama dela. Nas listas de erros, esse não aparece.
Em suma: há mudanças. De algumas se reclama, porque estão à vista (ouve-se muito que “doem nos ouvidos”). De outras, não se reclama porque estão distantes, ora mais, ora menos. Ou seja: quem reclama de mudanças reclama numa língua que já mudou, só que ele/ela não sabe.
Influência de fatores sociais e cognitivos
A questão que propus é se uma mudança pode ser prevista. Recentemente, ganhou notoriedade um programa de busca proposto pelos pesquisadores Erez Aiden e Jean-Baptiste Michel no livro Uncharted: big data as a lens on human culture (algo como ‘O inexplorado: grande quantidade de dados como lente para exame da cultura humana’). O sistema pode vasculhar documentos aos milhões e fazer algumas descobertas.
Uma que mereceu destaque nas resenhas diz respeito aos verbos irregulares do inglês. Pesquisadores contratados para a tarefa encontraram 177 verbos irregulares no chamado Old English, número que baixou para 145 no Middle English – a língua do escritor e filósofo inglês Geoffrey Chaucer (1343-1400) – e para 98 no inglês moderno. O que significa que, dentro de décadas (ou séculos), os verbos irregulares do inglês podem desaparecer.
Mas nada é assim tão simples. A pesquisa revelou também que, dentre os verbos irregulares do Old English, os 12 mais frequentemente usados permaneceram irregulares, enquanto que 11 dos 12 menos frequentemente usados sofreram a mudança. O resultado mostra que há fatores envolvidos na manutenção ou abandono de certas formas. Fatores sociais e cognitivos estão entre os mais relevantes.
Um exemplo de fator social? Numa das resenhas surge um fato até curioso e de interpretação mais ou menos óbvia (não fica claro se está em Uncharted ou se é uma observação do resenhista Haywata Bray, do jornal The Boston Globe, pois o programa, Egram, pode ser acionado por qualquer um; um amigo o testou para verificar o volume de citações de determinados intelectuais modernos).
Segundo se pode ler na resenha, a construção “The Unites States are” era mais frequente quando a Federação era “pensada” como uma coleção de estados. Já a construção “The United States is” passou a ser mais comum após a vitória da União na Guerra da Secessão. Trata-se de um fato histórico com uma banda cognitiva, como se pode ver.
Os autores acham que descobriram que um processo como a evolução, no sentido darwiniano, pode ser confirmado nos campos histórico e cultural. Digamos que isso é bem velho. Fiquemos com o sistema de busca, que também se presta a brincadeiras. Por exemplo, Bill Clinton é mencionado tantas vezes quanto lettuce, duas vezes mais do que cucumber e mais ou menos a metade de tomato…
Duas coisas importantes
Se não se pode prever o que vai mudar, no caso das línguas, talvez se possa ter alguma segurança sobre o que não vai mudar. Por exemplo: a queda da vogal final dos verbos latinos, quando aquela língua se tornou português (simplificando muito), pode muito bem ser “prevista” depois, isto é, explicada: a vogal não é portadora de sentido, um dos critérios para haver mudança.
Atualmente, sabemos que o “r” final também caiu na prática, no uso, embora se escreva (não muitas vezes nas mensagens no “Face”): de fato, dizemos amá, benzê, divertí. Explica-se, em parte: o “r” também não é portador de sentido; o que distingue amá de ama e benzê de benze é a sílaba acentuada (já divertí infinitivo não se distingue de diverti passado, exceto pelo contexto ou pela construção sintática).
Em toda essa questão da mudança, duas coisas são importantes: a) a origem da mudança é, em geral, popular; b) mais ou menos inconscientemente, ajudada por fatores internos à língua (como a posição e a função – ou a falta de função – do final dos verbos latinos), a forma nova, eventualmente dita errada, passa a ser progressivamente empregada por pessoas mais cultas.
Muitas vezes, antes pelos jovens, depois pelos mais velhos (eventualmente os antigos jovens). Com o tempo, ninguém mais lembra as formas antigas, exceto se for aos livros daquele tempo ou se ler escritores/jornalistas etc. mais antigos ou mais conservadores.
Ou seja: não há mesmo decadência. Há apenas mudança. Talvez do tipo darwiniano, que, então, poderíamos chamar de “evolução”, sem a conotação de ‘progresso’.
Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas