Músculos de Hércules e cérebro de Einstein

A ficção científica está repleta de androides e ciborgues. Para quem não conhece a literatura científica pertinente, fica a dúvida sobre o que há de real e plausível por trás dessas extraordinárias – e, em alguns casos, assustadoras – máquinas.

Um exemplo emblemático é o da série de TV O homem de seis milhões de dólares, baseada no livro Cyborg, publicado por Martin Caidin em 1972, e exibida nos Estados Unidos nos anos 1970. A abertura do seriado, reproduzida abaixo com a dublagem em português, é sintomática do fascínio que os homens biônicos exercem sobre o imaginário popular.

A palavra cyborg é a abreviação, em inglês, da expressão ’organismo cibernético’, cunhada nos anos 1960 por Manfred Clynes para expressar o funcionamento inconsciente de um sistema de controle homeostático por meio de um componente externo. Um exemplo de componente externo muito comum em nosso cotidiano é o marca-passo, utilizado para regular nosso batimento cardíaco.

Outros exemplos não faltam na medicina moderna, mas o desafio para construção de um ciborgue é enorme. Faltam muitos componentes artificiais com funcionalidade e dimensão compatível com o ser humano. Rim artificial já existe – prova disso são os inúmeros equipamentos de diálise –, mas ninguém conseguiu produzir um tão pequeno que possa ser implantado em nosso corpo.

O desafio supremo para a construção de um ciborgue é simular o cérebro

O desafio supremo, porém, é a produção do cérebro, essa extraordinária maquininha que administra bilhões e bilhões de minúsculos processadores, de um modo ainda não inteiramente compreendido. Uma única coluna do neocórtex com dois milímetros de comprimento e meio milímetro de diâmetro contém dez mil células, conectadas por aproximadamente cinco quilômetros de fibras.

Se ainda não compreendemos o cérebro, não podemos reproduzi-lo. Mas não é por falta de interesse. A neurociência, na sua forma mais ampla e moderna, é um bem-acabado exemplo de interdisciplinaridade, uma vigorosa área de pesquisa com inúmeros cientistas dedicados a desvendar o misterioso cérebro. 

Supercomputador Magerit
O supercomputador Magerit, instalado na Universidade Técnica de Madri, é uma das máquinas usadas no Projeto Cérebro Azul, que tem como objetivo criar um cérebro sintético por engenharia reversa do cérebro dos mamíferos (foto: Wikimedia Commons – BY-NC-SA 2.0).

Simulação do cérebro

Uma estratégia óbvia, embora completamente inacessível para muitos estudiosos, é a simulação por meio de computadores. Muitas máquinas potentes são necessárias. Vejamos o exemplo do Projeto Cérebro Azul da IBM. Construído para que uma equipe do Instituto Federal de Tecnologia da Suíça, em Lausanne, simule uma coluna do neocórtex, ele custou algo em torno de 20 milhões de reais, possui mais de mil processadores e é capaz de processar mais de 22 trilhões de operações por segundo. É uma capacidade fenomenal, mas está muito longe de representar a extraordinária complexidade do cérebro.

Pesquisadores franceses descobriram que um transistor orgânico com nanopartículas de ouro simula a sinapse

Um salto promissor foi dado recentemente por uma equipe de pesquisadores franceses da Universidade de Lille. Eles descobriram que um transistor orgânico com nanopartículas de ouro simula a sinapse, o processo pelo qual a informação é transmitida de um neurônio a outro.

Fenômenos de condutividade elétrica em materiais orgânicos, investigados desde os anos 1970 (veja a coluna do mês passado), originaram o que hoje se conhece como eletrônica molecular. É nessa área que se concentram as esperanças de avanços na neuroeletrônica. A contribuição dos franceses tem a ver com o primeiro passo a ser dado nessa área, algo em que a equipe de Lausanne também vem investindo com outra abordagem.

Refiro-me à invenção de dispositivos e sistemas eletrônicos capazes de efetuar operações similares àquelas efetuadas pelo cérebro. Podemos incorporar a esse grupo de pesquisadores aqueles que investigam a possibilidade de simular o cérebro com uma junção Josephson, feita com materiais supercondutores (veja as colunas de maio e junho de 2007). Embora se reconheça o valor epistemológico dessa última proposta, os trabalhos ainda estão numa fase muito incipiente. Então, a bola da vez está nas mãos dos franceses. 

Para Dominique Vuillaume e seus colaboradores, o dispositivo criado por eles, denominado memória com nanopartículas orgânicas em transistor de efeito de campo (Nomfet, na sigla em inglês), tem sobre os concorrentes a vantagem de passar por cima do chamado “gargalo de von Neumann”, uma vez que não há separação física entre a memória e o sistema de processamento de dados.

Vejamos em que consiste esse gargalo. Uma das limitações dos circuitos eletrônicos com arquitetura de von Neumann está na comunicação entre a memória e as outras partes do circuito. Por exemplo, nos circuitos do tipo CMOS (veja as colunas de outubro de 2009 e de novembro de 2008) elaborados para simular o cérebro são necessários, no mínimo, sete transistores para realizar uma sinapse. Como para cada neurônio há mais de 10 milhões de sinapses, fica clara a exigência de circuitos na escala nanométrica para desempenhar esse tipo de função. Portanto, pelo menos no âmbito das necessidades está aberta a estrada para a eletrônica molecular.  

Sinapses de árvores em um céu de inverno
‘Sinapses de árvores em um céu de inverno’ é o título que o autor da foto acima deu à imagem, que evoca as ligações entre as diferentes células nervosas. Cada neurônio tem mais de 10 milhões de sinapses (foto: flickr.com/30589354@N03 – CC BY 2.0).

Eletrônica molecular

Nos materiais biológicos, a informação transita por meio de descargas elétricas. A passagem de um sinal – ou potencial de ação – de um neurônio para outro adjacente é mediada pela sinapse. Nessa passagem o sinal é modificado e pode ser amplificado ou reduzido. Para esse fenômeno, a literatura consagrou os termos sinapse facilitadora e depressiva.

O processo é extremamente complexo. O sistema neuronal determina quantos neurotransmissores serão utilizados em cada evento e, dependendo da frequência com que chegam ao ponto de contato, decide se o sinal será transmitido no modo depressivo ou facilitador. Esta última etapa é conhecida como plasticidade de curto termo ou plasticidade rápida, um comportamento dinâmico amplamente investigado.

A rapidez de processamento das sinapses desafia a criatividade humana a imitá-la

Pense no número astronômico de sinapses em um cérebro humano. É fácil imaginar a rapidez de processamento desse sistema biológico, uma propriedade que desafia a criatividade humana a imitá-la.

O Nomfet, com uma porta e dois contatos metálicos (fonte e dreno), é muito parecido com um transistor CMOS. A camada ativa é de pentaceno, um semicondutor tipo p. No canal entre a fonte e o dreno – um filamento com largura mínima de 200 nanômetros –, a camada de pentaceno é dopada com nanopartículas de ouro (diâmetro mínimo de 5 nanômetros), as quais, ao serem eletricamente carregadas, funcionam como nanocapacitores e possibilitam que o dispositivo atue como memória e como transistor.

É por isso que ele pode simular o processo de sinapse. Como um simples transistor, o Nomfet produz um sinal proporcional a uma voltagem aplicada. Na comparação com os sistemas biológicos, a voltagem aplicada é como se fosse o sinal pré-sinapse, enquanto o sinal de saída é análogo ao sinal pós-sinapse. Mas esse comportamento simples não é capaz de simular a plasticidade rápida.

Os pesquisadores franceses descobriam que isso é possível no Nomfet graças às nanopartículas de ouro. O mecanismo é um exemplo fabuloso da engenhosidade da natureza.

Simulador promissor

Dependendo da voltagem aplicada ao dispositivo, as nanopartículas podem ser carregadas positiva ou negativamente. Se a voltagem aplicada for retirada, as cargas fugirão das nanopartículas –  processo similar à descarga de qualquer capacitor. Então, se vários pulsos de voltagem forem aplicados, o processo de descarga ocorrerá no período entre os pulsos. É esse conjunto de tipo de voltagem, tipo de carga nas nanopartículas e frequência dos pulsos aplicados que fará do Nomfet um bom simulador da sinapse biológica.

Os resultados apresentados por Dominique Vuillaume e colaboradores no volume 20 da revista Advanced Functional Materials são impressionantes. As cargas acumuladas nas nanopartículas funcionam como os neurotransmissores, e as respostas do Nomfet são extraordinariamente similares àquelas observadas nos sistemas biológicos.  

Todos estão conscientes de que, por mais importante que seja essa contribuição, ela ainda representa um pequeno ponto no complexo cenário do comportamento dos sistemas neuronais.

A expectativa é que a boa compreensão desse cenário na escala molecular abra as portas para a implantação de circuitos em partes do cérebro, com a finalidade de execução de determinadas tarefas. E, sonho, ou pesadelo, a construção de um cérebro totalmente artificial – um desafio hercúleo para mentes einsteinianas.

Carlos Alberto dos Santos
Pró-reitor de Pesquisa e Pós-graduação
Universidade Federal da Integração Latino-americana (Unila)