Dizem que logo após a descoberta dos materiais radioativos, no final do século 19, alguns pesquisadores costumavam transportar em seus bolsos pequenos frascos com amostras desses materiais. A franco-polonesa Marie Curie (1867-1934), uma das pioneiras da radioatividade, manipulava despreocupadamente materiais radioativos que ela aos poucos retirava de um monte com mais de uma tonelada, armazenado nos fundos do seu laboratório. Morreu vitimada por uma leucemia, provavelmente associada à exposição a esses materiais.
Guardadas as devidas proporções, talvez estejamos passando, ou passaremos, por situação similar nessa era nanotecnológica. Quantas minúsculas e perigosas nanopartículas rondam por aí, prontas a penetrarem em nossa pele ou serem por nós ingeridas? E o que dizer do meio ambiente? Como tudo isso vai interagir com os nossos aquíferos e nossas fontes de alimentos?
Preocupada, muita gente está; com absoluto conhecimento de causa, quase ninguém. O cenário é carregado de controvérsias. Uma que tem circulado com muita frequência nos meios de comunicação de massa e nas revistas científicas refere-se ao uso de óxidos de zinco (ZnO) e de titânio (TiO2) em protetores solares.
Já faz um bom tempo que esses óxidos vêm sendo usados nesses produtos. Os protetores solares são, em geral, muito eficientes na absorção da radiação ultravioleta, mas deixam aquela desagradável camada branca sobre a pele. Logo os fabricantes descobriram que, diminuindo o tamanho das partículas de óxido até o limite nanométrico, é possível obter protetores transparentes tão eficientes quanto os originais. Nada mal, não é?
Unir a eficiência funcional aos requisitos estéticos é sem dúvida algo positivo. Mas, há pouco mais de cinco anos circulando nas prateleiras de supermercados e drogarias, esses produtos têm gerado debate público sobre seus efeitos tóxicos.
A pergunta óbvia é: sendo tão pequenas, essas partículas não poderiam penetrar na região subcutânea e chegar à corrente sanguínea? E, em lá chegando, o que poderão causar?
Que esses óxidos podem causar danos à saúde, a pesquisa científica não deixa dúvida, mas tudo indica que eles não podem vencer a barreira dermatológica e atingir o sistema linfático. Ou seja, não será por meio dos protetores solares que ZnO e TiO2 se tornarão uma ameaça, garantem fabricantes e muitos pesquisadores de renomadas instituições.
Mas há céticos que afirmam que as pesquisas ainda não consideraram todas as variáveis do problema. Por exemplo, a incapacidade de vencer a barreira dermatológica parece ser verdadeira no caso de peles saudáveis, mas pouco ou quase nada se sabe no caso de peles com algum tipo de doença.
Dificuldades para definir e regular
Preocupações e controvérsias mais sérias do que essas atingem outras aplicações nanotecnológicas, dando corpo a essa ciência emergente e naturalmente denominada nanotoxicologia. Seu objeto direto é a repercussão da nanociência na saúde humana, mas é inevitável que sua atuação englobe também o meio ambiente.
É nesse contexto mais geral que pretendo ilustrar os avanços científicos e tecnológicos relatados na literatura especializada, dando continuidade a abordagens anteriores que fiz aqui, em julho de 2009 e janeiro de 2012.
Comparando o que ali escrevi com o que li desde então, percebo que o cenário continua nebuloso, mas vem aumentando a consciência de que estudos nanotoxicológicos devem ser incentivados e parece ser intensa a busca por regulação de produtos nanotecnológicos.Tarefa complicada, a começar pelo fato de que ainda não se chegou a um consenso do que seja um nanomaterial.
A definição clássica de que se trata de algo que tenha pelo menos uma das dimensões inferior a 100 nanomêtros (100 nm) já não é suficiente. E esse é só o primeiro dos inúmeros obstáculos para o desenvolvimento de uma regulação consistente.
Quase todos esses obstáculos são representados por um outro tipo de dificuldade em analisar nanomateriais. Por exemplo, um parâmetro que começa a ser usado para classificar um nanomaterial é a razão entre área superficial e volume. Em vez de considerar simplesmente a dimensão inferior a 100 nm, diz-se que um nanomaterial deve ter razão superfície/volume superior a 60 m2/m3. Esse número corresponde justamente a uma esfera de diâmetro igual a 100 nm, mas do ponto de vista das propriedades físico-químicas faz mais sentido do que a medida do diâmetro.
O problema é que só existe um método universalmente aceito para medir a razão superfície/volume, o método Brunauer-Emmett-Teller (BET), e ele só é válido para materiais sólidos pulverizados, sem presença de qualquer material líquido. Os métodos para materiais em suspensão ou imersos em matrizes sólidas ainda encontram-se na mais tenra infância.
Entre benefícios e riscos
A despeito dessas dificuldades para caracterizar nanomateriais de modo aceitável para o estabelecimento de um sistema regulatório, as pesquisas avançam em outras frentes. A todo instante a literatura apresenta novos nanomateriais e prováveis aplicações na eletrônica, na medicina, na farmacologia e em inúmeros produtos que vão de cosméticos a produtos de limpeza, passando por equipamentos esportivos e outros produtos de uso pessoal.
E, felizmente, também avançam as pesquisas relacionadas ao impacto ambiental da nanotecnologia. Nessa área, predominam os estudos sobre toxicidade dos nanotubos de carbono (251 trabalhos catalogados na Web of Science, com a palavra-chave nanotoxicologia), do ouro (95 trabalhos), do dióxido de titânio (82), dos pontos quânticos (79), da prata (70) e do óxido de zinco (54).
Atribui-se a Paracelso (1493-1541) a frase: “Todas as substâncias são venenos, somente a dose correta diferencia o veneno do remédio”. A frase tem tudo a ver com os nanomateriais. Podem salvar e destruir vidas.
Nanotubos de carbono (NTC) injetados em alta dose em mesotélio de roedores produziram efeitos similares aos de asbesto. Por outro lado, ainda não se sabe se a inalação de NTC é capaz de transportá-lo até essas regiões sensíveis do nosso corpo.
Apesar de bastante benigno, TiO2, quando preparado em escala nanométrica e administrado em alta dose, tem provocado câncer de pulmão em ratos.
A questão é: qual a dose limite, abaixo da qual esse material não oferece risco para a saúde humana? Além dessa importante questão referente à dose, há que se preocupar com outras propriedades físico-químicas que surgem apenas ou são aumentadas nos nanomateriais.
Por exemplo, há estudos mostrando que, sob a ação da luz solar, nanopartículas de TiO2 liberam hidroxila, OH, capaz de quebrar fitas de DNA. No entanto, outras pesquisas mostram que essas nanopartículas usadas em filtros solares não conseguem atravessar a barreira epidérmica, sendo, portanto, inofensivas.
Mas, após o uso, estas são liberadas no meio ambiente, e o que acontece então? Ainda não temos resultados científicos suficientes para inquestionavelmente responder a essa questão.
É sempre a mesma coisa, como disse Billy Blanco no seu clássico Canto Chorado, “o que dá pra rir, dá pra chorar”. Ou, para rir mais do que chorar, é bom seguir o conselho dos toxicologistas Bengt Fadeel e Alfonso E. Garcia-Bennett: melhor prevenir do que remediar.
Carlos Alberto dos Santos
Professor-visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana