Neurociência em preto-e-branco

Demonstrações de preconceito racial são, felizmente, cada vez menos aceitáveis na sociedade. O que não significa, claro, que haja cada vez menos pessoas racistas. As que são, no entanto, precisam ter cuidado com a língua — ou com o cérebro, mais exatamente.

O esforço necessário para controlar a língua requer o funcionamento de regiões pré-frontais do cérebro que reprimem respostas automáticas, impulsivas ou pré-concebidas. Jennifer Richeson e colaboradores, da Universidade Darmouth (EUA), acreditam que essas mesmas regiões entram em ação no cérebro de pessoas brancas racistas durante o contato com negros — enquanto elas presumivelmente medem cada palavra, para esconder o preconceito. 

Em pesquisa publicada em 2003 na revista Psychological Sciences , Richeson e sua colega Nicole Shelton, da Universidade Princeton, mostraram evidências de que interagir com uma pessoa negra perturba o desempenho de brancos preconceituosos em tarefas que requerem “controle executivo” — a tal repressão de ações automáticas.

No estudo, universitários que se ofereceram sem ter conhecimento do verdadeiro objetivo das pesquisadoras passaram primeiro por um “teste de associações implícitas”, que indicava se eles associavam mais facilmente palavras de significado positivo ou negativo a “nomes de pessoas brancas”[1] ou “nomes de pessoas negras” . Para as autoras, o teste indica o “viés racial” da pessoa: sua dificuldade para dissociar coisas boas de pessoas brancas, e coisas ruins de pessoas negras.

Após o teste de associações implícitas, os voluntários foram convidados por um pesquisador estranho a oferecer, em poucas palavras, sua opinião sobre o sistema de alojamento universitário e sobre as diferenças entre negros e brancos, aparentemente para um outro estudo não relacionado.

Feito isso, os voluntários eram submetidos a um outro teste de associações, este manjadíssimo no mundo da psicologia. Era o Teste de Stroop, padrão na avaliação de controle executivo, que consiste em dizer, em voz alta, o nome da cor em que estão escritas seqüências de letras. É fácil quando as letras não fazem sentido, mas é preciso muito esforço cognitivo para não dizer “vermelho” quando esta palavra é escrita com letras amarelas, por exemplo ( clique aqui para fazer o teste e colocar seu córtex frontal à prova).

A descoberta principal de Richeson e Shelton foi que o desempenho no teste de Stroop de voluntários brancos com grande “viés racial” era prejudicado após terem exposto suas opiniões a um estranho negro. No entanto, quando o pesquisador estranho era branco, o desempenho no teste de Stroop não era afetado. O veredicto? “Quando se é racista, interagir com pessoa de outra cor deve exigir tanto controle cognitivo — um recurso escasso — que as regiões demandadas, exauridas, ficam temporariamente prejudicadas.”

Para testar esta hipótese, Richeson e colaboradores fizeram um novo estudo, publicado on-line na revista Nature Neuroscience em 16 de novembro. Trata-se essencialmente de um repeteco do estudo original, com uma adição: os pesquisadores queriam determinar se, durante a interação com o pesquisador de outra raça, havia de fato uma demanda acentuada das regiões cerebrais responsáveis pelo controle executivo no córtex pré-frontal.

Mas o experimento ideal não seria possível: pedir que os voluntários conversassem com o pesquisador estranho, negro ou branco, de dentro de um aparelho de ressonância magnética funcional, e acompanhar o funcionamento do seu cérebro enquanto isso. Apenas o movimento do rosto durante a fala já prejudicaria as imagens do cérebro.

A solução encontrada foi um tanto simplista, mas surpreendentemente já mostrou o que os pesquisadores esperavam encontrar: a simples visão de um rosto de outra raça — negra, no caso, já que todos os voluntários eram brancos — basta para que as regiões pré-frontais envolvidas no controle executivo sejam ativadas.

E mais importante: quanto mais forte o “viés racial” de cada voluntário, mais forte é a ativação do córtex pré-frontal que participa do controle executivo. Como uma ativação no mínimo de intensidade semelhante deve acontecer durante a interação pra valer com o pesquisador negro desconhecido, essa demanda dos sistemas de controle executivo, por sua vez, presumivelmente é a razão do mau desempenho dos voluntários “mais racistas” no teste de Stroop a seguir.

Mas há grandes distâncias entre o que de fato foi analisado e o que se pode concluir — ou não. Embora usado como indicador de “viés racial”, o tal teste de associações implícitas não é uma medida inequívoca do racismo do voluntário.

Primeiro, porque ele não distingue entre origens culturais, sociais e pessoais das associações palavra positiva/pessoa branca e palavra negativa/pessoa negra. Negros, aliás, costumam fazer essas mesmas associações de valores no teste — e isso não significa que sejam menos ou mais racistas que os universitários brancos do estudo.

E segundo, o argumento dos pesquisadores de que o teste é um melhor indicador de “viés racial” do que as declarações dos próprios voluntários sobre seus preconceitos soa perigosamente como Freud em defesa de suas teorias, quando o paciente as contestava: “você tem um trauma tão grave que não consegue aceitá-lo”!

O estudo também não permite conclusões sobre a origem do racismo, as bases cerebrais do preconceito ou as relações entre preconceitos e comportamento. Mas os autores não puderam deixar de dizer que, dado que a vida cotidiana envolve contato com pessoas de diferentes grupos demográficos, “ter preconceitos raciais” — o que impõe uma grande demanda ao sistema pré-frontal de controle executivo para que o preconceito não seja flagrante — “atrapalha o bom funcionamento cognitivo”. Em bom português: racismo faz mal às idéias.

Grande novidade…

Fonte:  Richeson JA, Shelton JN. When prejudice does not pay. Effects of interracial contact on executive function. Psychological Science 14, 287-290 (2003).

Richeson JA, Baird AA, Gordon HL, Heatherton TF, Wyland CL, Trawalter SA, Shelton JN. An fMRI investigation of the impact of interracial contact on executive function. Nature Neuroscience , dezembro de 2003. 

Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia