Neurônios sob encomenda

O que você diria de um pesquisador que se propusesse a estudar por que os canários machos cantam mais na primavera, ou de que modo certos genes determinam o surgimento de quatro asas em moscas, ou quais são as moléculas que orientam a regeneração da cabeça da hidra, um minúsculo organismo aquático? Talvez você o considerasse um pouco desequilibrado – pensamento comum sobre os cientistas – e muito provavelmente não lhe concederia verbas de pesquisa, se fosse o dono do dinheiro.

Erro de avaliação! Essas foram as pesquisas que iniciaram, há cerca de 20 anos, a explosão dos estudos sobre células-tronco, que hoje estão em grande voga e despertam grandes expectativas na comunidade científica e na população em geral. As perguntas cruciais por trás dessas questões de aparência exótica eram: de que modo algumas células do organismo conseguem gerar outros tipos celulares, formando os órgãos e tecidos corporais ou reconstituindo-os em caso de lesão? Essa capacidade é determinada geneticamente? Em que medida é influenciada pelo ambiente?

 

As células-tronco existem nos embriões e também nos organismos adultos. Nos embriões muito precoces, são capazes de gerar células de todos os tipos (totipotentes). Depois, essa capacidade vai ficando mais restrita (pluripotentes), até que elas se transformam em precursoras de tipos celulares específicos. Nos adultos, alguns locais apresentam células-tronco em grande número (a medula óssea, por exemplo, conhecida como “tutano” pelos cozinheiros e pelas donas-de-casa). Outros órgãos possuem apenas alguns nichos específicos onde existem células-tronco em pequeno número (é o caso do cérebro).

A grande importância prática dessas células consiste no fato de que poderiam ser utilizadas para reparar órgãos doentes ou até mesmo substituí-los. Que bom seria se pudéssemos fabricar células novas e sadias para substituir células doentes! Melhor ainda se pudéssemos fabricar um órgão novo para substituir o que estivesse doente.

Essa instigante perspectiva para a saúde humana tem agitado a opinião pública em todo o mundo, inclusive no Brasil. Todos se lembram da intensa discussão que se estabeleceu na nossa sociedade há poucos meses em torno da decisão do Supremo Tribunal Federal de legitimar a lei de biossegurança, que permite o uso de células-tronco embrionárias humanas em pesquisas.

Tomada a decisão, rapidamente os cientistas produziram os primeiros resultados: a primeira linhagem brasileira de células-tronco embrionárias humanas foi recentemente obtida por uma parceria entre o Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro e o Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. O governo também se mobilizou e, há poucas semanas, o Ministério da Saúde decidiu financiar a formação e a operação de centros nacionais destinados a produzir diversos tipos de células-tronco e fornecê-las em grande escala para a pesquisa e para procedimentos terapêuticos. Um desses centros – voltado para a produção de células-tronco embrionárias – será constituído pelos dois institutos acima mencionados.

Fábrica de neurônios
A grande vantagem das células-tronco embrionárias é o fato de serem totipotentes. Isso significa que, em tese, poderiam ser levadas a gerar quaisquer células diferenciadas do organismo. Neurônios, por exemplo. Células-tronco gerando neurônios seria tudo o que se deseja para substituir células em degeneração no cérebro de pacientes com doença de Alzheimer, acidentes vasculares cerebrais, traumatismos e outras doenças. O grande problema é como reproduzir o longo e complexo caminho de transformações que essas células gradualmente atravessam até se tornarem diferenciadas.

Os neurocientistas não sabem ainda muito bem se as células-tronco teriam informações genéticas próprias suficientes para percorrer esse caminho ou se precisariam de informações do seu microambiente (o seu “nicho”, no jargão técnico). Além disso, que grau de “especialização” poderiam ter os neurônios produzidos por essas células?

O ouriço Sonic, personagem do videojogo da empresa Sega.

Um avanço de grande impacto no esclarecimento dessa questão foi conseguido por pesquisadores da Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica, e da Universidade de Poitiers, na França, liderados por Nicolas Gaspard. Eles conseguiram levar células-tronco embrionárias de camundongo, em condições artificiais de cultura de tecidos, a se diferenciar em neurônios altamente específicos do córtex cerebral.

O desenvolvimento do córtex (corticogênese) é bastante conhecido e atravessa etapas bem determinadas. As células precursoras do embrião inicialmente proliferam várias vezes, até que algumas células-filhas deixam a região germinativa e migram para outros locais, onde se estabelecem em diferentes camadas e começam a produzir moléculas específicas de cada tipo celular. Nesse processo, elas também modificam a sua forma de modo específico e emitem prolongamentos que irão formar os circuitos altamente precisos que caracterizam o córtex do adulto.

Gaspard e seus colaboradores conseguiram reproduzir todas essas etapas em vidros de laboratório, simplesmente bloqueando uma seqüência de reações químicas intracelulares, iniciada por uma molécula que leva o nome gaiato de Sonic Hedgehog, que os leitores mais jovens hão de lembrar como um simpático ouriço, personagem de um videojogo bastante popular nos anos 1990.

Neurônio piramidal diferenciado a partir de células-tronco embrionárias (foto: Gaspard e colaboradores/ 2008).

Com essa única via bioquímica bloqueada e após vários dias, as diversas etapas foram percorridas. As células-tronco primeiro proliferaram, depois se transformaram em células piramidais (um importante subtipo de neurônios do córtex), produziram todo o conjunto de substâncias metabólicas típicas desses neurônios e assumiram a sua forma típica. E, mais importante que tudo, quando transplantadas ao cérebro de outros camundongos, estabeleceram os circuitos corretos, como fariam se fossem nascidas e criadas no ambiente cerebral normal e não em tubos de ensaio.

O trabalho do grupo europeu tem um grande impacto conceitual, porque diminui a importância que muitos atribuem ao “nicho” onde vivem essas células, salientando a possível existência de programas genéticos intrínsecos autônomos para a diferenciação celular. Tem também um grande impacto prático, porque abre caminho para o desenvolvimento de meios de cultura em laboratório capazes não apenas de garantir a sobrevivência das células-tronco durante períodos mais longos, mas também de dirigir a diferenciação no sentido de produzir neurônios “sob encomenda”. 

SUGESTÕES PARA LEITURA
N. Gaspard e colaboradores (2008) An intrinsic mechanism of corticogenesis from embryonic stem cells. Nature 455: 351-358.
E. Kokovai e colaboradores (2008) The incredible elastic brain: How neural stem cells expand our minds. Neuron 60:420-429.

Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
01/12/2008