Bactérias na superfície do intestino grosso humano. Foto: Gross L (2007) Human Gut Hosts a Dynamically Evolving Microbial Ecosystem. PLoS Biol 5(7): e199.
O corpo humano na verdade contém 100 trilhões de células, e não meros 10 trilhões. O que acontece é que 90% das células do nosso corpo são microrganismos que vivem simbioticamente em nosso intestino, estômago, boca, nariz, garganta, aparelho respiratório e sistema geniturinário. As bactérias que constituem essa microbiota derivam seus nutrientes de nós, mas pagam pela hospedagem se encarregando de várias tarefas essenciais para nossa saúde, incluindo a proteção contra patógenos e a conversão metabólica de nutrientes.
Não quero induzir os leitores a uma crise de identidade, mas nosso corpo é de fato mais microbiano do que humano. Ele constitui um verdadeiro sistema ecológico com grande biodiversidade, um superorganismo. Agregado ao genoma humano propriamente dito, temos esse genoma bacteriano suplementar, chamado “microbioma”, que contém cem vezes mais genes do que o nosso próprio.
A grande novidade na praça é que um grupo de cientistas, com o patrocínio dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos, deu recentemente o pontapé de partida ao “Projeto do Microbioma Humano”. Considerando que estamos falando de milhares de espécies de bactérias, como é tecnicamente possível fazer o seqüenciamento desse genoma coletivo?
Metagenômica
Como escreveu Stephen Jay Gould no seu excelente livro Full house: a difusão da excelência de Platão a Darwin , as bactérias são – e sempre foram – as formas dominantes de vida na Terra. A história das bactérias é a própria história da vida no planeta, desde que os primeiros fósseis – bactérias, é lógico – foram emparedados em rochas, há mais de três bilhões e meio de anos.
Ocorre que até hoje catalogamos apenas uma minúscula fração de todas as bactérias existentes, pois nosso conhecimento delas é totalmente dependente do cultivo e estudo em laboratório. No entanto, talvez a maioria delas não seja cultivável. Recentemente foi desenvolvida uma nova estratégia para capturar e estudar toda a diversidade dos microrganismos na Terra, a metagenômica. A proposta é trocar os meios de cultura do laboratório e a lente do microscópio pela tecnologia da genômica e da bioinformática.
O notável cientista J. Craig Venter pilotando seu iate-laboratório Sorcerer II . Venter é um iconoclasta, mas possivelmente o maior cientista biomédico americano da atualidade. Entre suas muitas conquistas científicas, podemos destacar: desenvolvimento da metodologia de etiquetas de seqüências transcritas (ESTs) para estudar o transcriptoma humano, desenvolvimento do seqüenciamento genômico total em “tiro de cartucheira” ( shotgun sequencing ), responsável pelo primeiro genoma completo ( H. influenzae em 1995), co-responsável pelo seqüenciamento do genoma humano, pioneiro da biologia sintética e da metagenômica. Em 1992 Venter esteve no Brasil como nosso convidado para participar da Conferência Sul-Norte do Genoma Humano em Caxambu. Logo depois, nosso grupo de pesquisa na UFMG iniciou uma colaboração com Venter que permitiu começar o primeiro esforço genômico brasileiro, o mapeamento de genes do parasito Schistosoma mansoni . Venter foi co-autor de nossa primeira publicação com os resultados do projeto (foto: Craig Venter Institute).
A estratégia metagenômica foi idealizada pelo legendário “genomicista” americano J. Craig Venter. Ele transformou seu iate pessoal Sorcerer II em um laboratório marinho e, em um projeto-piloto, examinou espécies de bactéria vivendo na água do Mar de Sargaços, circundando Bermuda no Atlântico norte, cujas águas paradas possibilitam o desenvolvimento de imensa quantidade de algas.
A tática experimental foi simplesmente colher amostras de água do mar e passá-las através de filtros bacterianos. O DNA das bactérias presas no filtro foi, então, extraído, fragmentado de maneiras diferentes e submetido ao seqüenciamento de DNA à la “tiro de cartucheira” ( shotgun sequencing ). As leituras foram, então, montadas como um quebra-cabeça e as espécies de bactérias enumeradas e caracterizadas por sofisticadas e poderosas ferramentas bioinformáticas. No estudo piloto, Venter identificou 1,2 milhões de genes em cerca de 1800 espécies de bactérias diferentes.
Na esteira desse sucesso, Venter e sua equipe agora estão dedicados à tarefa de circunavegar a Terra no Sorcerer II colhendo e caracterizando metagenomicamente amostras de todos os mares. Os resultados têm sido espetaculares. Em março deste ano, por exemplo, eles publicaram um artigo no periódico PLoS Biology que descreve um verdadeiro tour de force (todos os artigos da Expedição de Coleta Oceânica Global de Venter podem ser obtidos clicando aqui ).
Esse artigo relata o seqüenciamento de mais de 6 bilhões de pares de base de DNA (duas vezes o genoma humano) e a identificação de mais de 6 milhões de proteínas diferentes. Isso equivale a mais que o dobro do número de todas as proteínas descritas e presentes em bancos de dados até 2007. Várias das novas proteínas descobertas não tinham similaridade com qualquer outra descrita até hoje e parecem representar famílias protéicas completamente novas!
O Projeto do Microbioma Humano
Para o projeto do microbioma humano a mesma estratégia metagenômica vai ser utilizada, só que sem precisar sair de casa. Em vez das águas dos sete mares, serão utilizadas prosaicas amostras de fezes, saliva, secreções vaginais e esfregaços de pele humana.
Um estudo piloto do microbioma foi realizado nos Estados Unidos pela equipe do antigo Instituto para Pesquisa Genômica (recentemente renomeado Instituto Craig Venter) e publicado em 2006 na Science . Foram estudadas amostras de fezes de dois adultos sadios que não haviam recebido antibióticos por mais de um ano. A partir daí os pesquisadores geraram mais de 60 mil seqüências de DNA de cada indivíduo.
Um estudo piloto do microbioma sugere que a Methanobrevibacter smithii , retratada acima, é uma arqueobactéria metanogênica comum no intestino humano (foto: National Research Council Canada).
Foram encontrados centenas de tipos bacterianos, mas a maioria pertencia a apenas duas divisões chamadas Firmicutes e Bacteroidetes. Além disso, uma arqueobactéria metanogênica ( Methanobrevibacter smithii ) era muito comum. Isso demonstrou ao mesmo tempo grande diversidade e grande especificidade da microbiota intestinal, pois são conhecidas nada menos que 70 divisões de bactérias e 13 divisões de Archeae.
Podemos perguntar se o nosso microbioma é específico e individual como o nosso genoma. Existe em nós uma “impressão digital” bacteriana? Os estudos feitos até agora parecem indicar que sim. Os resultados revelaram que a composição da microbiota intestinal varia bastante entre indivíduos, mas que a variação ocorre primariamente entre espécies e subespécies de Firmicutes e Bacteroidetes. Também foi identificado que no hábitat intestinal algumas espécies de bactérias parecem ser residentes permanentes (componentes autóctones), enquanto outras aparentemente são transeuntes (componentes alóctones), de passagem junto com comida, água etc.
Isso faz sentido teórico. A persistência de bactérias em nossa pele e cavidades corporais depende de interação com componentes da membrana de nossas células, os quais são frequentemente polimórficos, dependendo do nosso genoma. Assim, nossa individualidade genômica pode determinar uma individualidade microbiômica.
Mas como é construído o microbioma? No útero, não temos nenhuma bactéria no nosso corpo. Começamos a adquirir nosso “eu bacteriano” no próprio processo de nascer, pelo contato com microrganismos do canal vaginal materno. Em um artigo recente, uma equipe da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, estudou o processo de aquisição da flora microbiana intestinal por 14 bebês.
Foi observado que no final do primeiro ano de vida as crianças haviam atingido um padrão essencialmente adulto de diversidade bacteriana, mas que havia diferenças significativas entre elas. Os dois bebês com a flora mais parecida eram dois gêmeos dizigóticos. Isso sugere que o ambiente também pode ser instrumental em determinar a natureza da nossa microbiota.
A ecologia da saúde e da doença
A visão do corpo humano como um superorganismo pode nos permitir ver saúde e doença em termos de equilíbrio ou desequilíbrio ecológico. Sabemos que os microrganismos sintetizam vitaminas essenciais para o nosso metabolismo e possibilitam a digestão de alguns nutrientes.
Não temos, por exemplo, a maquinaria química necessária para quebrar totalmente a celulose das plantas em seus constituintes elementares, mas as bactérias nos fornecem enzimas chaves deste processo, como a celobiase. Além disso, a nossa microbiota ocupa nichos ecológicos no nosso corpo que poderiam ser colonizados por patógenos.
Um estudo feito em 2006 apontou diferenças significativas entre a proporção de bactérias do grupo das Firmicutes em indivíduos magros e obesos (arte: Laura Kyro, Zhen He, Largus Angenent e Jeffrey Gordon).
Alguns resultados muito interessantes têm emergido sobre a interação entre a microbiota e nosso status metabólico. Em dezembro de 2006 o grupo de Jeffrey Gordon na Universidade Washington em Saint Louis, nos Estados Unidos, publicou na Nature um estudo instigante sobre a relação entre a flora intestinal e a obesidade.
Os autores estudaram indivíduos obesos e descobriram que a proporção de bactérias Firmicutes era significativamente mais alta do que em controles magros. Ademais, quando os obesos foram colocados em uma dieta e perderam peso durante um período de um ano, a proporção de Firmicutes caiu e ficou mais parecida com a de pessoas magras. Obviamente, essas correlações não demonstram causa-e-efeito e na verdade nem sabemos se a microbiota é a galinha ou o ovo neste caso.
Muitas perguntas permanecem. Até que ponto somos dependentes da população bacteriana que compõe nosso corpo? Mudanças na constituição da microbiota podem levar a problemas metabólicos outros que não a obesidade? E as doenças inflamatórias intestinais como a doença de Crohn e a colite ulcerativa? Será que hospedar espécies erradas de simbiontes bacterianos pode causar câncer, diabetes, doença cardiovascular? Seremos capazes no futuro de manipular nossa flora bacteriana corporal para prevenir ou curar doenças? Esperamos que as respostas a todas estas questões possam emergir do promissor Projeto do Microbioma Humano.
Até lá, só nos resta mudar o paradigma vigente com relação às bactérias. Elas não são nossas inimigas, que precisam ser destruídas e eliminadas de nossa vida com desinfetantes e antibióticos. Ao contrário, são parte integral e fundamental de nós mesmos.
Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
10/08/2007