Despeço-me do leitor da coluna Bilhões de neurônios, encerrando uma série de 56 textos publicados nos últimos cinco anos. Neste derradeiro texto, volto a comentar o tema da educação e o papel que a neurociência pode desempenhar nessa questão tão prioritária para o destino do Brasil.
Chamou-me atenção um trabalho excelente publicado na revista Science em 2010 por um time multinacional composto por instituições francesas, portuguesas e brasileiras. O grupo teve a condução dos neurocientistas franceses Stanislas Dehaene e Laurent Cohen, e contou com a participação dos brasileiros Lucia Willadino Braga e Gilberto Nunes Filho, da Rede Sarah.
A alfabetização melhora o funcionamento do cérebro? Caso sim, o efeito seria maior em crianças do que em adultos? De que modo esse processo ocorreria?
Se pensarmos que a leitura foi uma habilidade adquirida muito recentemente na história da humanidade, com o aparecimento da cultura, soa inimaginável que ela tenha sido determinada por algum processo biológico evolutivo. Então, o que faziam no passado as áreas cerebrais utilizadas agora para a leitura? E o que ocorre atualmente com as funções anteriormente coordenadas nessas áreas? Será que o cérebro dos analfabetos é diferente?
As regiões cerebrais da leitura
A equipe de pesquisadores propôs-se a responder essas questões comparando, entre três grupos distintos, a ativação cerebral provocada pela leitura e outras habilidades. A experiência foi feita com indivíduos alfabetizados na infância (portanto, escolarizados), com pessoas alfabetizadas tardiamente quando já adultas (não escolarizadas), e com um terceiro grupo formado por analfabetos.
Os sujeitos eram colocados no aparelho de ressonância magnética, e tinham suas habilidades de leitura testadas por meio da projeção de séries de letras, palavras e pseudopalavras (sem significado). Ao mesmo tempo, a imagem que o computador registrava era capaz de representar a atividade cerebral nas regiões envolvidas com a tarefa.
Como a leitura é uma habilidade essencialmente visual, outras formas de percepção visual foram empregadas: identificação de padrões geométricos quadriculados em xadrez, reconhecimento de faces, casas, ferramentas e até falsas letras. E como a leitura é aparentada da fala, os sujeitos ouviam palavras por meio de fones de ouvido.
Os primeiros testes mostraram que as palavras faladas eram percebidas igualmente por todos os participantes, mas as palavras escritas eram mais rapidamente percebidas pelos alfabetizados escolarizados do que pelos não escolarizados – já os analfabetos não eram capazes de identificá-las, como o esperado. Esse teste mostrou que o experimento era válido para todos, permitindo discernir o desempenho cerebral dos três grupos.
Na segunda rodada de testes, foi possível fazer o mapa cerebral da leitura, isto é, levantar a rede de regiões cerebrais ativada quando o indivíduo percebe visualmente e compreende uma série de palavras escritas. Observou-se um forte envolvimento das áreas cerebrais dedicadas à visão de formas complexas: uma área especificamente relacionada com a percepção visual da forma de letras e palavras, e outras envolvidas com diferentes aspectos da visão. Além disso, também apareciam mais ativas, exclusivamente representadas no lado esquerdo do cérebro, as regiões associadas à linguagem falada.
O cérebro dos analfabetos
Conclusão principal dessa primeira série de experimentos: uma rede de regiões cerebrais vinculadas à percepção visual está mais ativa nos indivíduos alfabetizados do que nos analfabetos, quando visualizam palavras escritas. Dentre os alfabetizados, os pesquisadores mostraram que não apenas o grupo de escolarizados apresenta maior ativação dessas áreas cerebrais – aqueles que foram alfabetizados quando adultos também revelaram essas mesmas regiões em grande atividade durante os testes.
Além disso, a extensão das áreas envolvidas com a leitura é maior para os escolarizados do que para os não escolarizados, e, como esperado, maior para estes do que para os analfabetos.
Isso significa duas coisas. O aprendizado da leitura também modifica o cérebro adulto, especializando nessa tarefa toda uma rede de áreas no córtex cerebral. Sempre há tempo para aprender!
E significa também que as diferenças encontradas ocorrem devido à leitura, e não aos aspectos culturais e sociais que a escola imprime nos indivíduos, já que não há grande diferença entre os alfabetizados escolarizados e os ex-analfabetos (não escolarizados).
A alfabetização, desse modo, em certo sentido, ‘melhora’ o funcionamento do cérebro, pois especializa a rede de áreas visuais e linguísticas, habilitando-as a compreender o significado dos símbolos da escrita. Em biologia, entretanto, não há ‘melhor’ nem ‘pior’: há ‘mais adaptados’ e ‘menos adaptados’. O cérebro dos alfabetizados se adapta, mesmo tardiamente, a processar a escrita, recrutando maiores extensões de áreas corticais. Essa habilidade favorece a vida social e a interação entre os indivíduos.
O que fazem então essas áreas nos analfabetos?
Os resultados que o time de neurocientistas obteve a esse respeito são sugestivos de que a área de percepção visual de palavras – situada no lobo temporal do cérebro – fica, nos analfabetos, dedicada à identificação de faces e de padrões geométricos. Será que eles são melhores que os alfabetizados nessa tarefa?
Conclusão e despedida
O trabalho com que me despeço dos leitores, agradecendo o interesse manifestado pelas numerosas mensagens recebidas ao longo desses anos, é o maior exemplo do grande paradoxo brasileiro, ao qual tenho me referido em repetidas oportunidades. Somos crescentemente competentes nas várias áreas da ciência – é o que nos prova a excelência do trabalho dos pesquisadores da Rede Sarah. Mas somos ainda um desastre na educação do nosso povo. Não é por acaso que o grupo de voluntários analfabetos que participou deste trabalho é formado de… Adivinhem. Brasileiros!
S. Dehaene (2009) Reading in the brain. Nova York: Penguin Viking.
S. Dehaene e colaboradores (2010) How learning to read changes the cortical networks for vision and language. Science, vol. 330: pp.1359-1364.J. Henrich e colaboradores (2010) The weirdest people in the world? Behavioral and brain sciences, vol. 33: pp. 61-83.
Roberto Lent
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro