“O charme de se morar bem”, “A importância de se amamentar”, “E se evitar o pior”, “A ideia de se criar um código de vestimenta”, “… para se ter um resultado”, “… que se escrever errado possui um objetivo”, “… com a capacidade de se aprender”, “… a importância de se considerar”, “… ao se tratar das procissões”, “… que impede de se enxergar com clareza”, “a gente não deve ter a ilusão que há fórmulas mágicas para se chegar a um crescimento mais acelerado”.
A lista não faz sentido? Bem, não é um texto. O que a caracteriza é que há em cada uma das citações um pronome que seria desnecessário, segundo certos critérios, o pronome impessoal ‘se’. Os exemplos são de fontes diversas. Recolhi dois em artigos da imprensa que os condenavam (é um monstrengo, não significa rigorosamente nada), outro em um site noticioso, outro em um artigo assinado por Marcos Poggi no Estadão (19/09), diversos em trabalhos de pós-graduandos que li recentemente. Os dois últimos são, respectivamente, do mais recente livro de Marcelo Rubens Paiva (Ainda estou aqui) e do ministro Joaquim Levy.
Se eu anotar todas as frases com esta característica em tudo o que eu ler e ouvir no próximo mês, vou coletar uma quantidade inimaginável de dados (sem prestar muita atenção, recolhi os três últimos exemplos depois de ter começado a escrever este texto; aliás, dois dias depois, tive a sorte de ouvir “Pelo telefone”, de Donga; o final da primeira estrofe é: “que na Carioca tem uma roleta para se jogar”; a gravação é de 1917!!)). É que este tipo de construção é cada vez mais frequente e, ao contrário do que se poderia pensar, ocorre em textos escritos e falados de pessoas de todos os níveis de escolaridade (talvez até nos textos de muitos que condenam a construção, mas a empregam sem se darem conta). Só não ocorre nos textos de alguns profissionais muito atentos a este tipo de “decadência”…
Há duas maneiras de analisar o fenômeno. Uma delas parte da tese de que uma língua deve representar coisas, representar o mundo. Se um termo não se referir a nada, decreta-se que há um erro. Ler As palavras e as coisas, de Michel Foucault, ajuda a entender como se analisou a linguagem quando esta tese vigorou soberanamente.
É no interior desta episteme, diria Foucault, que alguém afirmaria que o ‘se’ dos casos acima não se refere a rigorosamente nada. Portanto, seria um erro. Não um erro de concordância ou de regência, em desacordo com as normas de uma gramática, mas um erro de representação, um erro na forma de ver o mundo.
Um dos ‘problemas’ que se tornaram clássicos é o de orações cujo sujeito não se refere a nada (o exemplo mais badalado foi “O rei da França é calvo”: a França é uma república; portanto, “O rei da França” não tem referência). A questão ‘moderna’ é: mesmo assim, tem sentido?
A língua por si só
A outra forma de analisar o fato é esquecer, pelo menos momentaneamente, que uma língua pode se referir ao mundo (a um certo mundo), e colocar em primeiro plano que ela tem uma estrutura própria. Uma estrutura pode “bater com o mundo” (“O boi berrou” pode se referir a um fato: um certo boi emitiu num certo momento anterior ao da fala um som característico dos bovinos).
Mas também pode não bater exatamente com o mundo, por exemplo, pela repetição desnecessária de certos elementos. Pode-se referir a mais de um menino dizendo “os meninos” (dois plurais) ou dizendo “the boys / os menino” (um só plural para o sintagma). O efeito de referência é o mesmo.
Finalmente, também pode não bater com o mundo por incluir elementos que não referem nada, estão lá apenas para seguir uma regra. Pode-se dizer “chove” ou dizer “it rains / il pleut”. Claro que se pode instaurar um longo debate metafísico sobre se há um agente da chuva (expresso vagamente em it / il) ou se não há nenhum (e então “chove” seria uma representação mais adequada).
Nossas gramáticas dizem que, quando um falante não quer dizer quem fez o quê – o que pode ocorrer por medo ou respeito ou desinformação (– Atiraram uma pedra na vidraça. – Quem foi? – Não posso dizer… – Por que? – O pai dele me pega, se eu disser) –, pode valer-se de um recurso que é a indeterminação do sujeito.
Há diversos recursos para isso em português: a) ‘se’ como sujeito (vive-se bem aqui); b) verbo na terceira do plural (dizem que ele é de direita); c) verbo no infinitivo (ouvi chamar da rua; a importância de amamentar). Nem todas as gramáticas registram este último recurso. Sei que aprendi isso na escola, mas não conseguia documentar o fato em Bechara, Celso Cunha etc. Achei na Moderna gramática brasileira, de Celso Luft (Editora Globo, p. 46).
Tarallo e Kato mostraram, há cerca de 20 anos, acho (não encontro mais o artigo: socorro!) que o português segue uma deriva que o leva a preencher cada vez mais o lado esquerdo da frase. De várias maneiras, aliás. Uma é a construção tópico-comentário (O Brasil, ele é um país…), cada vez mais frequente (devo ter ouvido umas trinta ocorrências, ontem, numa mesa-redonda na TV – só com doutores, excetuada a jornalista). Outra é pelo preenchimento de sujeitos indeterminados, especificamente o terceiro caso acima mencionado. É como consequência desta deriva que ocorrem fatos como os listados no primeiro parágrafo.
O que aquele ‘se’ está fazendo lá? Ocupando o lugar de sujeito. Ausente ou presente, a oração significa a mesma coisa. Então, por que usar? Pressão do sistema da língua!
A língua tem uma ordem própria, que muda historicamente aqui e ali. Voltando a As palavras e as coisas: desde Bopp – quer dizer, desde o advento da linguística histórica – estudar uma língua é estudar uma língua. Não necessariamente o mundo que ela representa!
Resgatando leituras
Redescobri (já tinha lido, está até rabiscado) um fato interessante, documentado por Bechara (Lições de português pela análise sintática), quando procurava a terceira forma de expressar indeterminação. Cito:
“Pertence à sintaxe popular, com exemplos também em escritores clássicos do passado, o emprego do pronome ele junto a verbos impessoais, tal como o francês utiliza il nas mesmas circunstâncias: “Não que ele há marotos muito grandes na tropa! – obtemperou o padre João da Eira, rancoroso inimigo das armas, sem que fosse notável partidário das letras” (Camilo, A corja, 24). (…) “Ele há muito anequim e tintureira por aqui” (M. Lobato, Urupês, 61. Fala um marítimo “na sua linguagem pitoresca”, com o diz o autor.) O nosso escritor Rui Barbosa, imitando de propósito o modo de dizer que colheu nos bons autores que aponta em nota de pé de página, escreve na p. 492 da Réplica: “Que ele há nesse lugar um hiato, isso não direi que não”.
O que isso quer dizer? Que já se empregou ‘ele’ antes do verbo haver, hoje um dos exemplos mais acabados (e já em vias de desaparecimento) de verbo impessoal.
Como faz falta um pouco de história da língua (e mesmo de leitura das gramáticas) aos nossos palpiteiros gramaticais!
Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas