Em contraponto involuntário, mas oportuno com a coluna quase otimista do mês passado, hoje abordaremos a pegada ecológica de Vossa Excelência, o Boi. Sim, Excelência e Boi, com maiúsculas. Sejamos justos, a Cesar o que é de César: desde 22 de abril de 1500, a pecuária molda as relações do Brasil com seu território e, portanto, molda também a vida politica do pais. Quem é Excelência tem boi, e quem tem boi vira Excelência. Ou Coronel. Ou ambos, sem preconceito. A faixa presidencial no Brasil já afagou ternos, fardas e até vestidos, mas sua Excelência, o Boi, nunca perdeu a majestade.
Aliás, desde criancinha eu me perguntava como era possível criar tanto boi sem a presença de vacas. Cheguei a cogitar a hipótese de que se tratava, na verdade, de espécies diferentes. Pense bem, no restaurante a carne bovina é apresentada como de Boi. Na bolsa de valores, a cotação se refere à arroba do Boi. E fulano faz o que da vida? Ele cria Boi. Vai ver virei biólogo para isso: resolver o mistério da autoperpetuação do Boi sem a colaboração aparente de sua cara-metade. Hoje, já entendi que a questão não é biológica, e sim cultural – quem é sexista é o dono do Boi e não o inocente herbívoro.
Num fatídico dia de 1963, acompanhei meu tio paterno, veterinário e morador de Uberlândia (MG), aos confins de Goiás, onde tinha um serviço a prestar. Foi meu primeiro contato direto com o mundo real da pecuária. Eu tinha oito anos. O que guardei da experiência?
* As exuberantes fauna e flora, e o frescor das áreas de mata que não haviam sido ainda derrubadas para formação de novos pastos;
* a monotonia e o calor das pastagens;
* a desproporção brutal entre Bois e homens, com muitos dos primeiros e poucos dos segundos;
* o olhar sempre baixo dos peões, embora estivessem sobre cavalos;
* as evasivas quando eu perguntava ao meu tio ou ao seu contratante onde eles dormem, onde estão as famílias deles, onde eles ficam quando chove, quando termina o trabalho do dia; e
* (o que mais me surpreendeu e marcou) a ausência da carne nas refeições daqueles que lidam com toneladas da mesma o dia inteiro.
Naturalmente, eu ainda não havia lido Casa grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Mas foi um resumo inesquecível. Monocultura, escravidão, patriarcalismo, estava tudo ali, pulsando de contradições bem na minha cara. Conclusão: pense bem antes de levar um sobrinho ao trabalho, ele pode acabar virando colunista da CH On-line.
Pecuária em solos pobres
Nada disso impediu que a pecuária fizesse do Brasil o maior exportador de carne bovina do mundo, meio século depois. Antes de cantar o hino nacional brandindo um espeto de churrasco, uma perguntinha: como foi possível?
Sim, porque os solos brasileiros são pobres de marré-deci, como a maioria dos solos tropicais que não tenham um delta de rio ou um vulcão à mão para garantir fertilização natural periódica. São solos muito antigos. Enquanto o solo europeu e norte-americano dormia o sono dos justos sob espessas camadas de gelo, preservando seu precioso carbono orgânico, nutrientes etc., o solo tropical já penava sob a intempérie.
Chuvas torrenciais e calores escaldantes lavaram carbono e nutrientes por milhões de anos. A corrida só equilibrou um pouco há cerca de 10 mil anos, quando o gelo recuou para os polos, onde hoje aguarda resignado a extrema-unção, e os solos de áreas temperadas passaram a ficar expostos, eles também, aos rigores do clima e do homem. Com isso, os solos temperados passaram a perder massa e fertilidade, e os tropicais continuaram a fazer o mesmo, como vinham fazendo há tempos.
A resposta ao mistério do boi gordo em ambiente magro é simples: se a fertilidade é baixa, aumente a área. Suas pastagens estão degradadas? Desmate e faça novas pastagens, e vamos em frente que atrás vem gente. O problema é que pela frente vem gente também, fazendo o mesmo, e acabam se encontrando. Acabou o tempo da fronteira pioneira que se expande sem fim. O planeta é finito, e c’est fini. Baixa eficiência compensada com novo desmatamento já deu o que tinha que dar.
Vejamos. O Brasil tem 207 milhões de cidadãos e 212 milhões de Bois (e Vacas). Se o país desistisse da pecuária e distribuísse o rebanho entre seus habitantes, cada cidadão receberia 1,024 Boi ou Vaca. De início, isso aumentaria as emissões de carbono, devido ao pico de aquisição de freezers e ao aumento insano na frequência e intensidade de churrascos na laje, na varanda e no quintal, sem falar na falência das churrascarias rodízio. Mas, a médio prazo, não seria um mau negócio.
Surpreso, caro(a) leitor(a)? Pois não devia, é física pura. Boi requer pasto, muito pasto, e água, muita água. Pasto compete com floresta. Sem floresta, há menos água e menos chuva. Com menos água, a luz fica mais cara, a vida, mais escura, sofrida e incerta. Sua Excelência, o Boi (e sua sombra, a Vaca) tem quatro patas, mas centenas de quilos. Pisoteia e compacta o solo, extingue nascentes e deixa atrás de si extensas áreas de difícil recuperação para outros usos. Basta olhar ao redor, inocente leitor(a). Onde havia extensões sem fim de mata atlântica com suas fontes e regatos murmurantes, índios, aves e onças, há hoje o tédio das colinas de pasto inútil e sem fim, entrecortado por um condomínio aqui, uma fábrica ali. Carvão, cana, café, Boi, soja e seca, os males do Brasil são. E ainda há quem ache que os índios é que eram ingênuos por trocar pau-brasil por espelhinhos e contas coloridas.
Contas que não fecham
Se o agronegócio brasileiro é uma máquina que avança, consumindo matas, gerando lucros de curto prazo e deixando um rastro de terras degradadas atrás de si, sua Excelência, o Boi (e família) é um dos principais responsáveis. É assim há muito tempo. Afinal, estivessem dedicados à extração de pau-brasil, esmeraldas, ouro, açúcar, café ou soja, os senhores e os colonos da colônia, assim como os da democracia, sempre quiseram ter carne à mesa. A carne é riqueza e poder – sempre teve assento ou trono garantido nos fóruns que decidem o que importa. E o que se exporta, claro.
Carne e latifúndio sempre andaram abraçados no Brasil, ora direis, vocação inevitável destes solos pobres que requerem muita área para pouco bife, não é mesmo, foram os cientistas que disseram. Aliás, eles também disseram que áreas degradadas pela pecuária são muito mais difíceis e caras de recuperar e que provocam 22 vezes mais impacto ambiental do que receita, em reais.
Para pensar na cama: as pastagens da pecuária brasileira ocupam 200 milhões de hectares, gerando produtos e serviços que representam 6,8% do PIB. A agricultura representa 14,56% do mesmo PIB e ocupa um terço da área da pecuária, gerando mais empregos, maior segurança alimentar e menor impacto ambiental. Em tempos de seca persistente, cabe perguntar: já não teríamos passado da hora de nos tornarmos vegetarianos?
Falando sério, andei comendo em restaurantes veganos/orgânicos apresentados por minha filha adolescente e fiquei muito surpreso com o sabor, o frescor, a beleza e leveza da comida. A proteína animal não fez a menor falta – e olha que sou um carnívoro/piscívoro assumido e contumaz. E a conta não doeu.
É mercado de nicho, frescura de hipster de boutique, não é possível expandir em escala global? Quem disse? Alguém já tentou? Aguardo ansioso os comentários dos leitores. Enquanto isso, continuo produzindo tomate-cereja na varanda de casa, sem adubo, sem veneno, sem trabalho nem praga. Docinho. Já comi uma dúzia, há mais duas a caminho. É pouco, mas é só o começo. Esse troço vicia…
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro