Meu professor de acordeão chamava-se Karl Schulz. Era um alemão muito magro, morador de Vila Isabel, que me punha a tocar polcas mazurcas em plena ascensão de Elvis Presley e das guitarras elétricas. Não podia dar certo: eu odiava as aulas de acordeão das manhãs de quinta-feira.
Mas o professor Schulz tinha uma característica que me impressionava. Começava a aula de olhos fechados, pedindo-me que tocasse brevemente uma única nota do teclado do meu Scandalli. Ouvindo-a, declarava orgulhoso: “lá sustenido”. Resposta correta. Na semana seguinte, o mesmo ritual: “mi bemol”. Correto mais uma vez.
Eu ficava pasmo, porque precisava de várias notas tocadas em sucessão melódica para identificar o lá sustenido, o mi bemol e qualquer outra (capacidade que, ainda por cima, desaprendi desde então…).
Schulz era dotado de ouvido absoluto, característica perceptual de poucos indivíduos, capazes de identificar tons isolados sem outras referências, isto é, sem precisar relacioná-los com outros tons de uma melodia. Podem também cantar diretamente um tom solicitado, identificar todos os tons de um acorde e até dizer qual a frequência de um tom em Hertz.
Ao contrário, a maioria dos mortais precisa ser informada do tom predominante de uma sequência melódica para identificar os demais, ou ouvir a sequência para identificar algum. Nós temos ouvido relativo.
Poucos músicos têm ouvido absoluto: um deles foi Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), o compositor clássico austríaco; outro, o pianista de jazz norte-americano Keith Jarrett (1945-).
Interesse científico
O interesse dos neurocientistas por essa ‘curiosidade musical’ tem se ampliado recentemente, por duas razões. A primeira é que, aparentemente, trata-se de uma capacidade inata, talvez acentuada pelo treinamento, mas que já aparece aos primeiros anos de vida das crianças com ouvido absoluto. Um exemplo de interação entre a hereditariedade e o ambiente. Ou, como se diz na língua inglesa: “nature versus nurture”.
A segunda razão de interesse é que o fenômeno representa um modelo para descobrirmos de que modo o cérebro identifica – e diferencia dos demais – os sons musicais. Quem ouve e reconhece uma música emprega a percepção auditiva, mas também a memória.
Entram em ação nesse processo tanto a chamada memória operacional, que permite sustentar a sequência melódica na lembrança durante alguns momentos para se dar conta do conjunto, quanto a memória explícita, de longa duração, que permite saber se ouvimos “Carinhoso”, de Pixinguinha, “O tempo não para”, de Cazuza, ou a “Bachiana nº 5” de Villa-Lobos.
A percepção é mais rápida, parece imediata. Nosso corpo dá sinais instantâneos de que estamos ouvindo uma música: mudam a expressão facial, os gestos e às vezes a postura. Mas a memória auditiva, por outro lado, precisa de mais tempo para ‘consultar os arquivos’.
Quem sabe os indivíduos com ouvido absoluto são capazes de reconhecer os tons isolados perceptualmente, enquanto aqueles com ouvido relativo necessitam consultar sua memória para comparar os diferentes tons armazenados e só então o identificam?
A diferença está no cérebro
Os neurocientistas que estudam o assunto têm chegado à conclusão de que os indivíduos dotados de ouvido absoluto apresentam uma organização cerebral diferente dos demais.
Um dos primeiros experimentos foi realizado pelo fisiologista norte-americano Michael Klein nos anos 1980. Ele registrou o eletroencefalograma (EEG) de pessoas com ouvido absoluto e o comparou ao registro feito em indivíduos com ouvido relativo. Percebeu que as primeiras não apresentavam no seu EEG um potencial elétrico conhecido como P300, considerado um marcador funcional da memória operacional, presente nos portadores de ouvido relativo. Era uma primeira indicação de que meu professor Karl Schulz não precisava utilizar a memória para identificar os tons musicais.
De que modo, então, o cérebro de Karl Schulz, como o de Mozart e Keith Jarrett, diferiria dos nossos? Os trabalhos mais recentes, empregando imagens funcionais obtidas por ressonância magnética, lançaram considerável luz sobre a questão.
Os grupos de Gottfried Schlaug, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e o de Robert Zatorre, do Instituto Neurológico de Montreal, no Canadá, têm trabalhado nesse tema com sucesso.
Em um trabalho do ano passado, eles revelaram alguns novos conceitos importantes sobre a organização cerebral do ouvido absoluto. Reuniram 10 músicos com ouvido absoluto e 10 com ouvido relativo, todos do sexo masculino, com 18 a 40 anos de idade, instrumentistas e destros.
Todos tiveram seus cérebros registrados por um aparelho de ressonância magnética, imediatamente após ouvir tons musicais. A tarefa que tinham que realizar era assinalar, pressionando um botão com o dedo indicador, se o último (ou às vezes o penúltimo) tom de uma série de seis ou sete era igual ou diferente do primeiro.
O truque experimental consistia em realizar o registro da atividade cerebral entre 0 e 3 segundos depois de iniciada a série de tons, ou entre 4 e 6 segundos. Parece difícil de entender, mas não é. Se o ouvido absoluto fosse uma propriedade perceptual, as regiões correspondentes do cérebro seriam ativadas já no primeiro tempo (0-3 s). Mas se dependesse da memória operacional, que é uma função de natureza mais complexa, só no tempo mais tardio (4-6 s) haveria alguma diferença.
Rápido como um raio
Os resultados foram claros. Em ambos os grupos de músicos, as regiões auditivas do córtex cerebral foram ativadas. Nada de novo nisso. Em ambos também foram ativadas as regiões relacionadas à memória operacional. Mas nos músicos com ouvido absoluto, observou-se atividade bem maior no primeiro tempo, especialmente no sulco temporal superior do lado esquerdo, uma região do córtex cerebral envolvida com a percepção auditiva.
Não é o que aconteceu nos indivíduos com ouvido relativo, nos quais predominou maior atividade no córtex pré-frontal, envolvido com a memória operacional, e no córtex parietal posterior, importante para relacionar a audição com outros sentidos e percepções.
Como o intervalo curto reflete a fase de codificação auditiva dos tons, e o intervalo longo pressupõe processos cognitivos mais elaborados, conclui-se que algo de especial tinha o cérebro do meu professor de acordeão, que o tornava capaz de identificar tons com a rapidez de um raio, durante os processos iniciais da percepção auditiva. Ele não precisava comparar os tons isolados que ouvia com outros que ouvia na sequência, nem com as escalas armazenadas na memória.
A conclusão bate com o mapa de ativação cerebral e permite a proposição de uma nova hipótese para explicar a operação do cérebro dos músicos com ouvido absoluto.
Na proposta do grupo de Schlaug, eles possuiriam no córtex auditivo do lobo temporal um sistema de categorização ou classificação independente das frequências dos sons, capaz de imediatamente identificá-los sem comparações com outros. É como se fossem gavetas diferentes para cada tom. Caiu na gaveta 1, é um dó maior. Caiu na gaveta 2, fá sustenido.
Toda a percepção e análise musical ficaria então mais fácil, porque os tons já chegariam às regiões mais complexas devidamente identificados. O prazer da audição musical, a emoção evocada pela música e a memorização dos trechos tocados poderiam ocorrer com o trabalho inicial de identificação já realizado.
Coda
Duas outras conclusões importantes. A primeira: o hemisfério esquerdo revelou-se mais especializado nessa função de identificação de tons. A segunda: tudo indica que os indivíduos com ouvido absoluto nascem com essa capacidade, não a adquirem pelo treinamento. Isso porque todos os voluntários empregados no estudo de Schlaug tinham a mesma idade de início da prática musical, e o mesmo tempo de treinamento.
Acho que o meu professor Karl Schulz gostaria de saber de tudo isso. Mas dificilmente ele deixaria de me dar polcas mazurcas para praticar, em vez do rock’n’roll que eu tanto queria aprender…
Roberto Lent
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
M. Klein e colaboradores (1984) People with absolute pitch process tones without producing a P300. Science vol. 223: pp. 1306-1309.
K. Schulze e colaboradores (2009) Perceiving pitch absolutely: Comparing absolute and relative pitch possessors in a pitc memory task. BMC Neuroscience vol. 10: p.106. doi:10.1186/1471-2202-10-106.
P. Bermudez e R.J. Zatorre (2009) The absolute pitch mind continues to reveal itself. Journal of Biology, vol. 8: pp.75.1-75.5.