O cérebro em ação no mundo real

Que misteriosa e admirável capacidade têm os taxistas de nos levar pelos melhores caminhos no trânsito denso e tumultuado das grandes cidades! Ouvir o pedido do passageiro e ainda conversar com ele sobre amenidades. Mentalizar o mapa da cidade e planejar os trajetos mais adequados. Acelerar, desacelerar, frear, estacionar. Obedecer (ou não…) os sinais e as regras de trânsito. Seguir à frente, fazer a curva, desviar de algum ônibus, deixar passar os pedestres, seguir lentamente o engarrafamento…

De que modo o cérebro propicia essa complexa seqüência de ações e pensamentos? Como se poderia estudar a dinâmica das operações cerebrais fora do laboratório, nas condições do mundo real? Foi exatamente esse objetivo que se propuseram a abordar os neurocientistas ingleses Hugo Spiers e Eleanor Maguire, do Instituto de Neurologia do University College em Londres.

Clipe com cenas do jogo The Getaway, criado para o videogame PlayStation 2, da Sony, e usado no estudo que examinou o cérebro de taxistas de Londres. Com a tecnologia da realidade virtual, o jogo recria as ruas do centro da capital britânica com grande precisão. No clipe acima, o protagonista passeia a pé pela cidade; no estudo, os participantes dirigiam os famosos táxis pretos londrinos.

Os dois selecionaram taxistas com experiência no trânsito de Londres. Essa metrópole é muito exigente quando o assunto é a formação dos taxistas. Os candidatos a conduzir pela capital britânica um de seus famosos táxis pretos têm que passar por um rigoroso exame, no qual são exigidos conhecimentos detalhados sobre as ruas do centro, sem consulta a mapas ou à central de rádio.

O experimento foi feito com 21 taxistas: 20 sadios e um que havia sofrido uma doença viral do sistema nervoso, que destruiu uma região particular de seu cérebro chamada hipocampo. Seu desempenho foi analisado em um sofisticado videogame capaz de recriar em tempo real e dimensões proporcionais 110 quilômetros de ruas em 50 km 2 no centro de Londres, ao mesmo tempo em que eram captadas imagens de ressonância magnética funcional, indicadoras das áreas cerebrais ativas a cada momento.

O videogame apresentava um cenário dinâmico com as ruas reais cheias de carros, ônibus e pedestres. Os taxistas “dirigiam” seus carros usando dois joysticks: um na mão direita, com o qual controlavam o acelerador e o freio do carro, em marcha adiante ou marcha-a-ré; e outro na mão esquerda, por meio do qual controlavam a direção do carro. Além disso, fones de ouvido simulavam as instruções de trajeto ou mudança de rumo do passageiro, e mesmo algum comentário sem relação com a viagem. O taxista era instruído a evitar acidentes, como na vida real. Uma batida interromperia o jogo. A corrida era filmada e depois exibida para cada taxista, que relatava detalhadamente seus pensamentos ao assistir à gravação.

O cérebro em ação no centro de Londres

Um sofisticado videogame para treinamento de taxistas foi utilizado para documentar o funcionamento cerebral durante um passeio pelas ruas de Londres (foto: reprodução).

Em um dos experimentos (figura ao lado), o passageiro virtual solicitava ao taxista que o conduzisse ao Big Ben, o que imediatamente o levava a acionar a memória espacial do trajeto até o destino. Nesse momento, eram acionadas as áreas cerebrais relevantes para essa operação mental de reconstrução da geografia de Londres. A seguir, já em movimento, o taxista planejava o melhor trajeto rua a rua, e a cada ponto se deparava com ruas livres (que bom!), ou então bloqueadas por obras (arghhh!).

Sua atividade cerebral indicava expectativas atendidas ou frustradas, bem como vários momentos de inspeção visual do cenário, inclusive de aspectos não relacionados com o trajeto. Subitamente, o passageiro mudava de idéia e solicitava outro destino: o rio Tâmisa. Nova mudança de expectativas, replanejamento de todo o trajeto. A cada momento, era preciso dobrar as esquinas, acelerar e frear, desviar de outros carros. Até chegar ao (novo) destino final.

Um exemplo do experimento dos cientistas ingleses (clique para ampliar). O gráfico de cima (A) mostra a seqüência de operações mentais do taxista em todo o trajeto, codificadas nas mesmas cores dos quadros abaixo (B). Em cada etapa, a imagem funcional do cérebro do taxista é relacionada a seus pensamentos. Ao longo do trajeto são apresentados os comentários do passageiro virtual. Reproduzido de Spiers e Maguire (2006).

Nos taxistas normais, a região do hipocampo, por exemplo, apareceu muito ativa logo na fase inicial de planejamento do trajeto (note o ponto amarelo mais inferior, na imagem do cérebro apresentada no quadro vermelho da figura ao lado – clique para ampliar). Isso seria coerente com a idéia de que o hipocampo guarda um mapa mental dos espaços que conhecemos, permitindo a nossa navegação cotidiana em casa, no trabalho, nas ruas de nossa cidade.

Mas o taxista doente trouxe uma surpresa aos pesquisadores. Ele apresentou desempenho inferior no videogame, mas foi capaz de responder positivamente a vários aspectos do experimento. Quer dizer: não é só o hipocampo que guarda os mapas cognitivos do espaço que nos circunda e que conhecemos bem. Esse resultado fortalece uma segunda teoria da memória, que postula a existência de vários mapas: um no hipocampo, outros em regiões diversas do córtex cerebral.

Outras regiões cerebrais ativas no experimento com os taxistas foram associadas à identificação dos marcos visuais de cada ponto do trajeto (a estátua de Lorde Nelson, o rio Tâmisa…), a capacidade de mudar de direção seqüencialmente (dobrar a primeira rua à esquerda, seguir reto 100 metros, depois dobrar a segunda rua à direita…), a lembrança de locais há muito guardados na memória (essa foi a igreja em que me casei…).

O trabalho dos pesquisadores ingleses, especialmente por causa da nova metodologia que eles inventaram, tem propiciado um grande volume de resultados descritos em numerosas publicações nos últimos anos. Acima de tudo, os experimentos de Hugo Spiers e Eleanor Maguire abriram um amplo caminho para a investigação da memória e da cognição espacial. Eles mostraram que experimentos em situações bem próximas do mundo real, com o auxílio de novas tecnologias da realidade virtual, têm um grande potencial para nos ajudar a elucidar os mecanismos de funcionamento do cérebro humano.

SUGESTÕES PARA LEITURA
H.J. Spiers e E.A. Maguire (2006) Thoughts, behaviour and brain dynamics during navigation in the real world. NeuroImage, vol. 31: pp. 1826-1840.
H.J. Spiers e E.A. Maguire (2007a) Neural substrates of driving behaviour. NeuroImage, vol. 36: pp.245-255.
H.J. Spiers e E.A. Maguire (2007b) Decoding human brain activity during real-world experiences. Trends in Cognitive Neurosciences, vol. 11: pp.356-365.

Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
28/03/2008