Em 20 de abril, a plataforma de exploração em águas profundas Deepwater Horizon, que operava a cerca de 65 km da costa do estado da Louisiana, explodiu e afundou, matando 11 pessoas [veja aqui imagens da explosão]. Acidentes dessa grandeza e natureza não são raros, embora sua frequência seja muito baixa se levarmos em conta o número de plataformas em operação: só no Golfo do México há atualmente 56 mil poços.
Ainda assim, a probabilidade de tudo dar errado numa plataforma continua bem mais alta que a de ganhar na loteria. É sem dúvida uma façanha tecnológica extrair petróleo em alto mar, de poços situados a profundidades de 1,5 km ou mais, e trazê-lo até o continente de forma eficiente e segura, na esmagadora maioria das vezes.
O problema, aqui, é o mesmo das mortes em acidentes aéreos: a probabilidade de queda é muito baixa, sendo muito mais seguro, por quilômetro percorrido, andar de avião do que de carro.
Mas quando um avião tira o número sorteado, as consequências são catastróficas, com poucos sobreviventes ou nenhum. Lembraremos do fato – mas não sabemos dizer ao certo quantas pessoas já morreram atropeladas naquela avenida perto de casa que não tem sinal nem passarela.
Assim, não temos a mesma percepção ou reação diante dos riscos de baixa probabilidade e consequências extremas e daqueles de maior probabilidade e menor gravidade. E calculamos melhor as probabilidades e custos dos últimos que dos primeiros.
A indústria off-shore é um tipo especial de mineração, e seus registros de mortalidade e morbidade não são muito diferentes daqueles na mineração convencional em terra firme: são atividades de risco, ponto final. A terra firme nem sempre é tão firme assim, e quanto mais esburacada, pior.
Toleramos o custo social desse risco devido a nossa dependência dos recursos extraídos, todos fósseis, todos finitos: petróleo, carvão mineral, metais. Pois é, o calor desprendido pelo motor de seu carro veio de um Sol que brilhou há bilhões de anos, e o CO2 emitido pelo escapamento era biomassa vegetal na mesma época.
40 mil barris por dia
Mas sob o Sol de hoje, as 11 mortes foram ofuscadas por um fato inédito e singular. Desde 20 de abril, ou seja, há quase dois meses do dia de publicação deste texto, o petróleo flui livre e ininterruptamente do poço que estava conectado à plataforma Deepwater Horizon (que nome infeliz!).
A British Petroleum (BP), operadora da plataforma, começou estimando o fluxo em cinco mil barris diários. Semana passada, o número subiu de 20 para 30 mil, e a última estimativa é de cerca de 40 mil barris por dia.
Todas as tentativas de estancar a sangria fracassaram. As de recolher o óleo no ponto de vazamento tiveram êxito modesto. Evitar a chegada da maré negra ao litoral foi o mais difícil e frustrante.
Pela ação de ventos e correntes, a mancha inicial se desmembrou em centenas de outras, que atingiram áreas ao longo de centenas de quilômetros de litoral, incluindo a Flórida.
Mas certamente a maior potência mundial tinha enormes estoques de barreiras flutuantes para uma eventualidade do gênero, não é? Que nada! Nem desconfiavam que as famosas armas de destruição em massa de fato existiam e estavam mais perto de casa do que imaginavam: descansando sob 1,5 km de água salgada.
O mosaico de óleo cobre atualmente uma área de cerca de duas vezes o estado do Rio de Janeiro. A área onde a pesca está interditada é de 200 mil km2. Areias brancas, mar azul turquesa… O Caribe não será mais o mesmo. É o 11 de setembro ambiental, o Chernobyl da indústria petrolífera, diante do qual o naufrágio do Exxon Valdez se torna vandalismo de colegiais.
Chernobyl pelo menos foi causado por testes heterodoxos de operadores irresponsáveis, enquanto o acidente na Deepwater Horizon foi causado… por que mesmo? Ninguém sabe. Isso mesmo, e pior: talvez nunca se saiba.
E quando vão conseguir fechar este poço infernal? A ultima previsão oficial é: não antes de agosto. Então talvez seja só em dezembro, ou, quem sabe, nunca? Só para animar o pessoal: a temporada de furacões já começou e promete ser compatível com o nível de fúria ambiental deste 2010, que já teve de tudo.
Veja imagens do vazamento ininterrupto do poço de petróleo no fundo do mar
Sem plano B, C ou D
Assim descobrimos que nem tudo estava previsto. Havia capacidade para instalar um poço a 1,5 km de profundidade, mas não para tampá-lo, nem para impedir a expansão da maré negra, e planos B, C e D eram piada.
Confirmamos também coisas dolorosas que já sabíamos: a imagem é tudo, os fatos são secundários.
Na mesma edição do New York Times em que os pescadores de camarão da Louisiana reclamam ter recebido da BP, a duras penas, um cheque mensal equivalente ao lucro de apenas dois dias de pesca, a empresa publica mais um anúncio de pagina inteira, em fim de primeiro caderno, em que reafirma sua responsabilidade e determinação de limpar a lambança. A única foto mostra um barquinho junto a uma barreira flutuante ao longo de uma verde pradaria costeira. O óleo nem é visível, a luz é suave, quase zen.
Ah, mas a autorregulação dos mercados funcionou, as ações da BP caíram 40%. Pode ser, mas a distribuição rotineira de dividendos (!) aos acionistas da empresa só foi suspensa devido à grita geral. Isso lembra o pagamento de bônus aos executivos dos bancos que provocaram a crise financeira mundial? Não é coincidência: a lógica é a mesma, e está prevista em contrato.
Cabe perguntar: como a autorregulação dos mercados vai limpar o óleo derramado? Ixe… isto não estava no contrato.
Então vamos socializar o prejuízo, já estamos ficando acostumados. Assim como nos acostumamos às imagens de voluntários de macacão escovando freneticamente pelicanos besuntados e moribundos.
Enquanto o óleo flui sem parar, as más notícias se acumulam. Há muito óleo na superfície, em manchas que se espalham em direções diferentes, mas também sob a superfície. Contribuem para isso o caráter de emulsão água/óleo do vazamento e o uso intensivo de dispersantes, que fazem com que enormes manchas de óleo fiquem afundadas na água.
Uma delas tem 24 km de comprimento, 8 km de largura, 90 m de altura e está entre 700 e 1300 m de profundidade, segundo biólogos da Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos. Brrr… Eca!
E os royalties…
Enquanto isso, no Brasil, a mesma lógica perversa prevalece. Os estados produtores de petróleo off-shore, maiores vítimas em potencial de catástrofes como a do Golfo do México, não terão nenhum privilégio na distribuição dos royalties do petróleo, segundo emenda em tramitação em Brasília.
E a nova versão do código florestal, em animada discussão na mesma cidade, quer abrir mais espaço para a agricultura à custa de matas ciliares e florestas nativas.
Encostas e mananciais, tremei. Vai sobrar exportação de grãos e carne, vai faltar cobertor para desabrigados e água para todos. Afinal, certas coisas são previsíveis, sim.
Concluo com a lembrança indelével de uma palestra do diretor da Embrapa no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, em 2008. Em momentos diferentes da palestra, ele apresentou números sobre a área de exploração agropastoril no Brasil e a extensão das áreas degradadas pela mesma atividade, no mesmo país. Eram muito próximas. Alguma coisa está fora da ordem – fora da ordem mundial, e nacional.
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro