O combustível do século 21

Nos anos 1960, costumava-se ridicularizar um professor da Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) pela sua insistência em construir um motor que funcionasse com água. A coisa não era bem assim, mas era essa a notícia que circulava.

Mal sabiam os risonhos trocistas que a ideia já poderia ter sido implementada 130 anos antes, quando Sir William Robert Grove (1811-1896) inventou o que hoje chamamos de célula a combustível – que, em grandes linhas, pode ser definida como um dispositivo que converte energia química em energia elétrica.

Nem o inventor britânico, nem o obstinado professor brasileiro tiveram sucesso na obtenção de um motor que funcionasse com hidrogênio. O primeiro porque estava interessado apenas no fenômeno da produção de eletricidade pela recomposição da água e não tinha o menor interesse pelas suas aplicações; o segundo, porque não tinha as mínimas condições materiais para superar as enormes dificuldades do empreendimento.

A ideia básica da geração de eletricidade com hidrogênio é simples, como ilustra a animação abaixo. O dispositivo é alimentado com hidrogênio e oxigênio e, ao final do processo, não gera nada que polua – apenas água e calor. Mas não custa lembrar que poluentes são gerados em outras etapas envolvidas no desenvolvimento dessa tecnologia – um exemplo típico são os metais pesados utilizados em pilhas e baterias, como se verá mais adiante.

A ilustração representa um sistema de geração de eletricidade em uma célula a combustível de hidrogênio. Fluxos de hidrogênio e oxigênio são admitidos separadamente. O fluxo de hidrogênio passa por uma região em que existem dois tipos de material, um que arranca o elétron do hidrogênio e outro que só deixa passar cargas positivas. Assim, prótons (núcleo de hidrogênio) atravessam o material e elétrons seguem outro caminho, gerando corrente elétrica durante seu transcurso. Na outra extremidade, elétrons, prótons e átomos de oxigênio juntam-se para formar água (arte: Wikimedia Commons).

O material que “quebra” o hidrogênio – representado em lilás na animação – é conhecido pelo nome de catalisador. Entre as várias substâncias que podem desempenhar esse papel, um dos preferidos é a platina. O material que só deixa passar cargas positivas é o eletrólito. Este também pode ser de natureza variada, mas o que está na moda é uma membrana de polímero (PEM, na sigla em inglês). O conjunto é conhecido como célula PEM.

Nem tão simples assim
Portanto, a utilização de uma célula a combustível de hidrogênio envolve basicamente três tarefas. A primeira envolve o fornecimento de hidrogênio e oxigênio, a segunda consiste em transformar corrente elétrica em força-motora, e a terceira engloba a preparação do catalisador e do eletrólito. Dito assim parece simples, mas não é. Se assim fosse, não estaríamos hoje onde estamos, 170 anos depois da invenção de Sir William Groves, nem os gozadores de Natal teriam oportunidade de praticar seus gracejos em relação àquele professor da Escola de Engenharia.

É claro que fatores econômicos influenciaram o retardamento dessa tecnologia. Entre eles, o custo relativamente baixo da gasolina. Não custa lembrar que, na primeira década do século 20, 35% de todos os veículos registrados nos Estados Unidos eram movidos a eletricidade. Em Londres existiam dez mil carros elétricos. Tudo isso foi abandonado depois que o industrial norte-americano Henry Ford (1863-1947) implementou a primeira linha de montagem para os motores a combustão interna, em 1913.

A humanidade levou quase um século para se convencer de que a escolha da gasolina não foi uma boa ideia. O hidrogênio, limpo, perdeu para o carbono, que tudo suja depois que sai da gasolina queimada. Parece que é chegada a hora da revanche. O uso dos hidrocarbonetos derivados do petróleo está associado à poluição do ar, ao efeito-estufa, ao aquecimento global – tudo favorece o hidrogênio.

Mas não é apenas isso. Em termos de combustível, o hidrogênio também rende mais do que o carbono. Um automóvel médio necessita de 24 quilogramas de gasolina (aproximadamente 30 litros) para percorrer 400 quilômetros. Com uma célula PEM, são necessários apenas 4 kg de hidrogênio. Tudo isso resulta da eficiência teórica do processo de conversão de energia química em elétrica, que pode chegar perto de 100% em uma célula a combustível. Isso é assim porque o processo não está limitado pelo ciclo de Carnot, cuja eficiência beira os 25%.

Como armazenar o hidrogênio?
O problema é que, em temperatura ambiente e pressão atmosférica, 4 kg de hidrogênio ocupam 45 mil litros – ou um balão com aproximadamente 4 metros de diâmetro. Não dá para andar por aí rebocando um tanque de combustível desse tamanho. A solução mais imediata que se pode imaginar para resolver esse problema é comprimir o hidrogênio em um reservatório sob alta pressão. Mesmo assim, para alguns especialistas a solução não satisfaz as necessidades práticas. Os 4 kg de hidrogênio, comprimidos sob 200 atmosferas, ocupam um tonel com 225 litros.

A inclusão das moléculas de hidrogênio (representadas em verde) nos interstícios das estruturas cristalinas de alguns materiais (em cinza) é uma das possibilidades usadas para se diminuir o volume ocupado por esse material nas células de combustível (arte: Argonne National Laboratory).

Embora essa tecnologia de gás comprimido continue sendo objeto de pesquisa, outras alternativas estão sendo testadas. Para Ennio Peres da Silva, do Comitê Diretor do Centro Nacional de Referência em Energia do Hidrogênio, “o problema do tanque já está… não direi resolvido, mas enquadrado, pois temos uma tecnologia que já atende a boa parte dos requisitos necessários”. Para uma atualização da literatura, visite http://www.professorcarlos.com

Nos anos 1970 vislumbrou-se a possibilidade do uso de hidretos como fonte de hidrogênio. O hidreto de paládio, um dos primeiros a ser investigados, logo foi descartado pelo alto custo. Depois, investiram no hidreto de lantânio e níquel, que não apresentou bons resultados práticos, mas abriu o campo de pesquisa para uma série de compostos que resultaram nas baterias recarregáveis de hidreto metálico de níquel (NiMH), que estão em larga medida substituindo aquelas de níquel e cádmio (NiCd). Outra possibilidade cogitada foi a inclusão de hidrogênio nos interstícios das estruturas cristalinas de alguns materiais, como ilustra a figura ao lado.

Qualquer que seja o caso, uma descoberta importante é que a eficiência de manipulação do hidrogênio aumenta à medida que os cristais se apresentam em escala nanométrica. Essa descoberta exigiu anos de pesquisa, com muita gente em inúmeros laboratórios de vários países trabalhando naquilo que hoje conhecemos como moagem mecânica – uma espécie de vigorosa chacoalhada nos materiais, quando estes se encontram sob a forma de pó.

Os combustíveis sólidos ocupam volumes muito inferiores aos mencionados acima. Por exemplo, 4 quilogramas de hidrogênio podem ser distribuídos em aproximadamente 5 litros do hidreto Mg 2 NiH 4 . Na prática, um bloco de Mg 2 Ni constituiria o reservatório de hidrogênio a ser conectado à célula. Em algum ponto de distribuição, similar aos atuais postos de gasolina, haveria um equipamento para encher o reservatório com hidrogênio, que seria consumido ao longo de 400 quilômetros.

Tudo isso seria perfeito, não fossem alguns probleminhas. Por exemplo, para introduzir e retirar o hidrogênio nesse hidreto é necessária uma temperatura superior a 250º C. Pesquisas recentes apontam para a possibilidade de baixar essa temperatura para um valor inferior a 50º C. Problemas similares acontecem com outros materiais, e é por esses e outros obstáculos que o carro elétrico ainda não está sendo produzido em larga escala.

Carros elétricos comerciais
Em 1997, a Toyota lançou o Rav4 EV, equipado com uma bateria NiMH, mas a baixa procura levou à interrupção da fabricação desse modelo em 2003. Ficou para a empresa o conhecimento tecnológico adquirido com essa experiência, posteriormente aplicado no modelo híbrido Prius, que utiliza gasolina e eletricidade. No mesmo ano a Honda também lançou o modelo Honda EV Plus, com bateria NiMH, mas já em 1999 a empresa passou para o modelo híbrido Insight.

Ônibus experimental com célula a hidrogênio comprimido fabricada pela empresa canadense Ballard Power Corporation (foto: VTA).

Atualmente está no mercado o modelo Honda FCX Clarity, com uma célula PEM acoplada a um tanque de hidrogênio superpressurizado (300 a 350 atm). Mazda, Mitsubishi, Nissan, Daimler-Benz e Ford também fizeram suas experiências com carros elétricos.

Esse renovado interesse pelos carros elétricos nos anos 1990 foi em grande parte motivado pelas inovações tecnológicas apresentadas pela empresa canadense Ballard Power Corporation, uma das principais fabricantes de células a combustível de hidrogênio.

Todos esses experimentos têm mostrado que o armazenamento do hidrogênio é o principal obstáculo tecnológico para a fabricação em larga escala de automóveis movidos a hidrogênio. O Departamento de Energia norte-americano estabeleceu alguns parâmetros que vêm sendo usados por todos os pesquisadores, no caso de armazenamento sólido. O reservatório deve ser capaz de armazenar uma quantidade de hidrogênio igual ou superior a 6% do seu peso; a temperatura de carga e descarga do hidrogênio deve ficar entre -30º C e +50º C; o tempo de recarga deve ser inferior a 5 minutos; o custo da carga não exceda 5 dólares por cada quilowatt-hora de energia. Nenhum reservatório produzido até o momento satisfaz todos esses requisitos.

A arte representa um mesmo volume de hidrogênio – 4 kg – compactado de quatro formas diferentes. Da esquerda pela direita, em dois diferentes hidretos metálicos (Mg 2 NiH 4 e LaNi 5 H 6 ), na forma líquida e comprimido sob 200 bar (arte: reprodução / Nature).

Esperança e ceticismo
A esperança de uma solução adequada para o problema do armazenamento do hidrogênio continua depositada nos hidretos metálicos. No entanto, muitos pesquisadores têm investido recentemente em materiais do tipo carbono ativado, grafite, grafeno, fulereno, nanotubos e nanofibras. Mas os resultados são muito dispersos e pouco conclusivos até o momento.

Dificuldades na preparação de boas amostras têm proporcionado resultados de difícil reprodução. Ainda assim, cálculos recentes sugerem que, dependendo da estrutura do carbono, será possível o armazenamento de 6% de hidrogênio em termos do peso do tanque de armazenamento.

O professor Marcus Zwanziger, ex-diretor do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e criador do Laboratório de Hidrogênio da mesma universidade, não mais acredita “na viabilidade de carros a hidrogênio, nem em carros a bateria”. Seu ceticismo não é generalizado na comunidade acadêmica ligada a essa área, mas vários pesquisadores manifestam receios econômicos em relação ao desenvolvimento dessa tecnologia.

Embora tenhamos tratado aqui apenas dos tanques de gás comprimido e da célula PEM, existem outras alternativas tecnológicas sob análise. Ninguém é capaz de dizer qual é a melhor alternativa e ninguém tem coragem de investir pesado em uma ou outra tecnologia. Seja como for, os debates nos fóruns internacionais indicam a necessidade de investimentos públicos.

Pelo visto, parece que ainda vai demorar para chegarmos a um posto de combustível e solicitarmos ao frentista: “por favor, 4 quilos de hidrogênio!”


Carlos Alberto dos Santos
Colunista da CH On-line
Professor aposentado pelo Instituto de Física
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
24/04/2009