Estamos habituados a classificar os materiais elétricos em duas categorias: isolantes e condutores. Mas quem avançou um pouco mais nos estudos da física e das ciências dos materiais sabe que existem outros dois tipos extremamente importantes para a eletrônica contemporânea. Um deles são os semicondutores, já amplamente consagrados.
O outro ainda aguarda sua inclusão em produtos tecnológicos comerciais de larga escala. Refiro-me aos supercondutores, materiais que permitem condução elétrica praticamente sem dissipação de calor, mas que só funcionam em temperaturas muito baixas, o que limita sua aplicabilidade tecnológica.
Os semicondutores, por outro lado, logo que foram adequadamente investigados com o uso da teoria quântica, nos anos 1930, transformaram-se em protagonistas centrais da microeletrônica, a revolução tecnológica que não para de evoluir. Quando puros, os semicondutores são isolantes, mas basta que se coloque uma pequena quantidade de alguns tipos de impurezas para que eles se transformem em condutores muito especiais.
O mais ilustre membro dessa família é o silício, o suporte básico de toda a tecnologia eletrônica desde meados do século passado. Mas uma previsão dos anos 1970, conhecida como Lei de Moore, aponta para o esgotamento tecnológico do silício ou, em linguagem dramática e exagerada, o fim da era do silício. O problema é que ninguém sabe quem o substituirá nessa difícil missão de contribuir para a produção de chips cada vez menores e mais eficientes.
Há uma década, foi descoberto um material feito de carbono, o grafeno, logo ungido como rei da próxima era. Mas, antes mesmo que suas promessas virassem produtos comerciais, eis que surge o estaneno (em inglês, stanene), uma finíssima camada de estanho, como novo candidato ao trono. Seu nome é uma referência à denominação latina do estanho, stannum, e uma homenagem ao ‘rei deposto’, grafeno (em inglês, graphene). Curiosamente, a candidatura foi lançada sem documento de nascimento do candidato. Até agora, o estaneno só existe nas equações dos artigos teóricos, mas acredita-se que, quando for fabricado, poderá desbancar o silício. Será?
Propriedades peculiares
Em teoria, o estaneno pertence a uma classe de materiais descoberta há pouco mais de 30 anos e que recebeu a estranha denominação de isolantes topológicos. Dita em linguagem corriqueira, a coisa parece simples. Trata-se de um material isolante em praticamente todo o seu volume, mas que apresenta uma finíssima camada superficial condutora. Todavia, tanto a origem do nome isolante topológico, quanto a existência da camada superficial condutora são rodeadas por uma complexa cadeia de conceitos da teoria quântica e da relatividade, o que torna difícil definir até mesmo um ponto inicial para contar a história.
Comecemos pela existência da finíssima camada, uma espécie de gás de elétrons confinado a um espaço bidimensional, algo que vem sendo investigado desde meados dos anos 1960, sobretudo depois que Alan B. Fowler e colaboradores mostraram que novos fenômenos quânticos surgiam quando elétrons eram confinados em um canal com espessura de 10 nanômetros formado por eletrodos de alumínio e de silício. Essa área de estudo, que passou a ser conhecida pelo nome de sistemas eletrônicos bidimensionais a partir do início dos anos 1970, produziu inúmeros resultados importantes para a ciência e para a tecnologia, motivou a concessão de alguns prêmios Nobel de Física e originou, no começo dos anos 1980, a ideia dos isolantes topológicos.
A essa altura não posso deixar de fazer referência explícita ao efeito Hall, mesmo que para isso tenha que contornar muitos detalhes conceituais. Considero isso importante porque a literatura de divulgação científica que está tratando do estaneno vem deixando de lado a importância do efeito Hall para a existência desse material.
Há quatro tipos de efeito Hall. O primeiro foi descoberto em 1879 pelo físico norte-americano que deu nome ao efeito, Edwin Herbert Hall (1855-1938). O segundo, conhecido como efeito Hall quântico integral, foi descoberto em 1980 pelo físico alemão Klaus von Klitzing, ganhador do Prêmio Nobel de Física de 1985. O terceiro, conhecido como efeito Hall quântico fracionário, foi descoberto pelo norte-americano Robert Betts Laughlin, o alemão Horst L. Störmer e o chinês Daniel C. Tsui e lhes valeu o Prêmio Nobel de Física de 1998. Finalmente, o quarto, conhecido como efeito Hall quântico com spin, foi teoricamente proposto pelo físico argentino Jorge E. Hirsch em 1999 e logo observado em diversos experimentos.
Embora em princípio qualquer material possa apresentar o efeito Hall, em qualquer uma das suas modalidades, é nos semicondutores que o fenômeno pode ser observado mais facilmente. Todos os quatro efeitos têm a ver com a interação de campos magnéticos com cargas elétricas em movimento.
O efeito Hall clássico ocorre quando um campo magnético externo atua sobre uma corrente elétrica. Uma corrente em uma fita condutora ou semicondutora e um campo magnético perpendicular à fita formam o melhor arranjo experimental para a sua observação. O efeito final é o acúmulo de cargas positivas em um lado da fita e de cargas negativas no outro lado. O lado em que cada tipo de carga fica depende dos sentidos da corrente e do campo magnético.
O efeito Hall quântico, a versão quântica do efeito Hall clássico, foi pela primeira vez observado em semicondutores em baixa temperatura e sob o efeito de campos magnéticos intensos. Uma propriedade importante no efeito Hall é a resistência elétrica – denominada resistência Hall – que surge transversalmente à corrente elétrica. Klitzing e colaboradores observaram que a curva da resistência Hall em função do campo magnético, em vez de ser uma reta contínua ascendente, tinha, em certos pontos, alguns platôs, onde a resistência era constante. Mais importante do que isso, o valor dessa resistência não dependia nem dos detalhes geométricos da amostra, nem das imperfeições do material, nem do tipo de material.
A robustez do fenômeno levou à ideia de que ele apresenta invariância topológica, ou seja, é insensível a variações dos parâmetros dos materiais, desde que elas sejam suaves, isto é, que não haja uma brusca transição dessas propriedades ou uma transição de fase quântica (fenômeno similar a qualquer tipo de transição, como a transformação de água em gelo ou em vapor, só que relacionado à matéria em situações quânticas).
A ideia se consolidou com os resultados obtidos por Laughlin, Störmer e Tsui, que demonstraram que um gás de elétrons preso a um espaço bidimensional e sujeito a um campo magnético externo se comporta como se fosse um fluido quântico incompressível. O gás, formado na interface entre dois semicondutores, apresenta um conjunto de propriedades físicas que, pela semelhança com aquelas que os matemáticos estudam em topologia, passaram a ser denominadas invariantes topológicas.
Um exemplo clássico dessas propriedades é a forma toroide, que pode ser representada por uma rosca de massa de modelar. A transformação da rosca em uma xícara não faz desaparecer o buraco central da rosca. Ele apenas muda de lugar e de tamanho: vai para a asa da xícara e torna-se um pouco menor, mas é preservado em sua essência. Ou seja, embora a geometria específica (local e tamanho do buraco) tenha mudado, a topologia é a mesma.
Muitos materiais semicondutores e isolantes apresentam essas propriedades, sendo o estaneno o mais novo da família.
Um isolante especial
Mas o estaneno é um isolante topológico especial, como mostram Shou-cheng Zhang e colaboradores em trabalho recentemente publicado na Physical Review Letters (confira aqui versão com livre acesso). Ele exibe a quarta modalidade do efeito Hall, que é uma consequência da teoria da relatividade de Einstein.
Segundo esse efeito, elétrons movendo-se em altas velocidades têm seus movimentos alterados por causa da interação entre seu spin e os campos magnéticos criados pelos movimentos dos outros elétrons. Esse fenômeno, conhecido como interação spin-órbita, é bastante significativo em átomos com muitos elétrons, como o estanho.
O resultado dessa interação em elétrons confinados em um espaço reduzido é que eles são separados conforme a orientação de seus spins. Essa separação faz com que os movimentos dos elétrons sejam correlacionados com os sentidos de seus spins. É como se fosse criado um canal de circulação para cada orientação dos spins. Spins orientados para cima caminham em um sentido, e spins orientados para baixo caminham em sentido contrário, em canais diferentes.
Não havendo elétrons se deslocando em sentido contrário no mesmo canal, não haverá choque entre elétrons. Não havendo choque entre elétrons, o movimento será mais rápido e praticamente não haverá resistência elétrica. Como a dissipação de calor nos circuitos elétricos é proporcional à resistência elétrica, está aí a primeira grande promessa do estaneno: produção de componentes eletrônicos mais rápidos e com menor dissipação de calor. A outra promessa é que o material poderá servir como fonte de spins para dispositivos da spintrônica.
O problema agora é produzir nosso personagem, um desafio tecnológico e tanto, até porque seu concorrente, o grafeno, já passou da fase da simulação computacional e está aí no mundo real, embora com produtividade abaixo da expectativa.
Carlos Alberto dos Santos
Professor-visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana