O fim da indústria do vestibular?

Para qual universidade você vai prestar vestibular? Que curso você escolheu? É o que mais ouvem os alunos que terminam o ensino médio de pais e professores ansiosos por saber o que seus pupilos escolheram ser quando crescerem. Além, é claro, da infalível “você está estudando?”, pergunta que aterroriza todos os vestibulandos, principalmente em dias ensolarados. 

 

Se você é um dos que planejam ingressar na universidade nos próximos anos, as notícias são boas. Você continuará precisando estudar nos domingos de sol, não se iluda. Mas, a julgar pelas últimas declarações do ministro da Educação, Fernando Haddad, talvez você não tenha que fazer tantas provas quanto pensava. Caso você seja o primeiro da sua família a tentar cursar o ensino superior, suas chances de ingresso em alguma universidade pública talvez sejam até bem maiores do que você previa.

No fim de março, o ministro Fernando Haddad anunciou que pretende acabar com o vestibular ao instituir uma única prova, o Exame Nacional do Ensino Médio – Enem –, como seleção para o ingresso nas universidades federais. Embora não seja uma imposição a todas as universidades, a proposta conta com a simpatia de muitos reitores, principalmente daqueles cujas universidades já adotam o Enem como forma de seleção para ingresso na graduação.

Com a nova prova, o Ministério de Educação pretende unificar o acesso ao ensino superior, permitindo que um aluno faça a prova em qualquer lugar do país e, de acordo com a sua nota, possa pleitear uma vaga no curso de sua escolha em qualquer universidade federal brasileira. A medida faz parte da grande expansão do ensino superior federal , da qual o aumento do número de vagas para novos alunos nos últimos anos – de 113 mil para 227 mil – talvez seja a parte mais marcante.

Reorientação curricular
Para além da democratização do acesso à universidade pública, o Ministério da Educação pretende golpear de vez o vestibular, provocando a tão desejada reorientação curricular do Ensino Médio, que anda demasiadamente sobrecarregado pelo excesso de conteúdo e pela predominância da “decoreba” como método de apreensão do conhecimento.

Na proposta da nova prova, em vez das atuais 63 questões de múltipla escolha, seriam 200, mantendo também a redação, já presente no modelo em vigor. As questões contemplariam quatro áreas do conhecimento: linguagens (língua portuguesa, língua estrangeira e redação); matemática; ciências humanas; e ciências da natureza. As competências e as habilidades dos alunos seriam avaliadas, como já são hoje, a partir da solução de problemas baseados, por sua vez, em conteúdos estabelecidos em conjunto pelo governo e pelas universidades.

Alunos resolvem o Enem de 2008 em Querência, no Mato Grosso (foto: Secretaria de Educação/MT).

Aplicado pela primeira vez em 1998, o Enem tem como fundamento a valorização da autonomia intelectual do aluno, que deve demonstrar na prova que sabe pensar, argumentar, criticar, relacionar, defender suas ideias. Ou, como dizem os teóricos construtivistas, que ele aprendeu a aprender.

Nesse sentido, o Enem não afere conteúdo: o objetivo da prova é avaliar o preparo do aluno para ingressar na universidade e no mercado de trabalho e para o exercício pleno da cidadania. O exame propõe a resolução das chamadas situações-problema a partir das atividades de observação, interpretação, análise, comparação e tomada de decisões.

Vejamos um exemplo: na prova de 2007, uma questão pedia a análise de um gráfico que mostrava o crescimento do número de espécies da fauna brasileira ameaçadas de extinção ao longo do tempo. A partir dos dados fornecidos, o aluno deveria responder qual seria o número de espécies ameaçadas de extinção em 2011. Não há, portanto, nenhum conteúdo específico; ao contrário, para chegar ao resultado, o que o aluno deveria saber era a operação matemática, não o conteúdo de ciências.

Como hoje o Enem é uma prova voluntária, seu impacto no currículo do ensino médio foi pequeno – ou menor do que deveria, ao menos. Ao aumentar o alcance da prova, o objetivo do governo parece ser justamente o de influir mais decisivamente aquilo que é ensinado hoje na escola.

Aprender a aprender
E o que é ensinado hoje na escola? Educadores, gestores e, principalmente, alunos concordam que na escola pouco se aprende a aprender. Ao contrário das premissas do Enem, das Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio (1998), dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (2000) e das Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006), o ensino é compartimentado em disciplinas que, por sua vez, são organizadas em conteúdos. Nada de interdisciplinaridade, nada de competências e habilidades, nada de solução de situações-problema. Como os conteúdos acabam por se tornar um fim em si mesmos, só sobra mesmo a memorização.

Como romper com essa situação? A pergunta é fácil; a resposta, dificílima. São muitas as propostas. Algumas delas já foram transformadas em práticas, como a inclusão das disciplinas sociologia e filosofia na grade curricular regular. Outras, por sua vez, ainda estão muito longe de virar realidade, como a escola em tempo integral, o professor com dedicação exclusiva e um salário condizente com suas funções e atribuições.

Claro que o novo Enem não terá condições de solucionar os problemas da educação básica brasileira. Mas cabe perguntar se a nova prova, da maneira como está sendo pensada, será de fato um passo adiante. Afinal, apesar de diferente do vestibular de hoje, a prova será, em tese, também bastante diferente do atual Enem. Nesse sentido, a pergunta é: essas medidas serão suficientes para acabar com a indústria do vestibular e com a profusão de cursinhos caça-níqueis que assombram as mentes e os bolsos dos vestibulandos?

Em outras palavras: trocar 63 questões não relacionadas diretamente a conteúdos por 200 atreladas a conteúdos não seria, na prática, uma concessão ao primado dos conteúdos – que, se desprovidos de sentido, reforçam a memorização – em vez de reforçar o raciocínio? Se for mesmo assim: não corremos o risco de, para substituir a indústria do vestibular, instituirmos a indústria do Enem?


Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
10/04/2009