O genoma joga dados?

No mês passado , prometi que iria abordar nesta coluna a controvérsia evolucionária neutralista-selecionista. Vamos lá!

No início do século 20 foi percebido que havia certa incongruência entre o mendelismo, que definia os caracteres hereditários como sendo descontínuos, discretos, e o darwinismo, que postulava a evolução com base em variações contínuas e graduais desses caracteres. A solução deste problema, ou seja, a síntese entre Darwin e Mendel ocorreu pelo esforço do “trio maravilha” – Ronald Fisher, JBS Haldane e Sewall Wright – , em conjunto com George G. Simpson, Ernst Mayr, Theodosius Dobzhansky (que trabalhou durante anos na USP) e outros.

Esta “teoria sintética da evolução” , ou mais simplesmente “síntese moderna” , foi concebida dentro de um modelo essencialmente selecionista e determinista. Note-se que a seleção natural precisa agir sobre uma variabilidade pré-existente, gerada por mutações, que por sua vez são eventuais, randômicas, imprevisíveis. Desta maneira, a aleatoriedade faz parte integral da síntese moderna, mas de uma maneira domesticada, totalmente controlada pela seleção natural, que faz a garimpagem das mutações e escolhe quais delas são adaptativamente úteis. A síntese moderna também aceitava a deriva genética (*), mas com um papel secundário, somente em pequenas populações e por curtos intervalos de tempo.

O geneticista japonês Motoo Kimura (1924-1994), pai da teoria neutralista da evolução.

No final da década de 1960, Motoo Kimura demonstrou matematicamente que era possível haver evolução por deriva genética na ausência de seleção natural, mesmo em grandes populações e por longas escalas de tempo. Esta teoria neutralista da evolução , ao invés de ser percebida como um avanço espetacular, foi tomada como uma ameaça ao status quo e uma afronta ao darwinismo. Iniciou-se então a chamada controvérsia neutralista-selecionista, cujos bastidores estão discutidos de maneira fascinante pelos próprios protagonistas em uma oficina de trabalho que aconteceu na Universidade de Harvard em 2002 e cujos transcritos podem ser livremente acessados na internet

Pessoalmente, não vejo esta controvérsia como um episódio isolado na história da ciência, mas como apenas uma batalha de uma guerra muito maior entre duas visões de mundo: uma que percebe o universo como determinista, previsível, estritamente alicerçado em causa-e-efeito e outra que aceita incerteza, indeterminação, casualidade, contingência, imprevisibilidade, caos.

Para explorar melhor esta idéia, façamos uma breve viagem ao passado. O desenvolvimento da mecânica clássica pelo físico britânico Isaac Newton (1643-1727) no século 17 permitiu que a dinâmica dos sistemas pudesse se reduzir a equações de solução exata que possibilitavam a feitura de predições a respeito dos seus estados futuros. O matemático francês Pierre-Simon de Laplace (1749-1827) levou Newton às suas últimas conseqüências e propôs que, se um “demônio” soubesse com precisão absoluta a posição e a velocidade de todas as partículas existentes no universo, ele poderia prever todo o futuro. Esta visão determinista do universo, que foi chamada paradigma unidirecional causal , dominou a ciência desde então.

Contudo, a partir do século 19, ela tem sido mais e mais questionada. A sua refutação mais famosa foi feita na década de 1920 pelo físico alemão Werner Heisenberg (1901-1976), que enunciou o princípio da incerteza , segundo o qual é impossível determinar simultaneamente e com precisão absoluta a posição e a velocidade de uma partícula. Essencialmente, Heisenberg estava dizendo que o demônio de Laplace era uma fraude! Einstein, um determinista de carteirinha assinada, protestou revoltado, dizendo: “Deus não joga dados!”. Observem que a controvérsia entre Einstein e Heisenberg, mais que científica, era transparadigmática.

Paradigmas são maneiras de perceber e interpretar o mundo, estruturas de raciocínio, viseiras epistemológicas. O confronto entre pessoas encarceradas em paradigmas diferentes é freqüentemente acirrado e violento, pois elas, não percebendo que estão utilizando estruturas cognitivas diferentes, se enxergam como burras, ilógicas, teimosas ou mal intencionadas. Estes conflitos paradigmáticos ocorrem todo o tempo ao nosso redor. Preste atenção neles.

Se o leitor sair por um instante da sua armadura paradigmática causal, verá que não há incompatibilidade entre o neutralismo e o selecionismo, ou seja, eles podem ser vistos como complementares, ao invés de antagônicos. O neutralismo livrou a teoria evolucionária da necessidade de explicar tudo em termos de seleção natural. Com isso, a teoria de Kimura ajudou a esclarecer observações que a síntese moderna não era capaz de explicar, como, por exemplo, o elevado nível de polimorfismo genético (*) em populações naturais, incompatível com o modelo selecionista porque acarretava níveis insuportavelmente altos de carga genética (*).

Livro autografado por Kimura para o colunista.

Atualmente entendemos polimorfismos como simples etapas no processo de evolução molecular, e não precisamos mais de recorrer a hipóteses barrocas para justificar a sua existência. Dialeticamente, podemos dizer que do conflito entre o neutralismo e o selecionismo emergiu uma nova teoria sintética da evolução, mais abrangente, mais robusta e com maior poder de explicação.

Em 1988, no 16º Congresso Internacional de Genética em Toronto uma coincidência incrível aconteceu. Eu havia acabado de comprar o livro de Kimura, The Neutral Theory of Molecular Evolution (cuja publicação em 1983 é considerada o término da controvérsia neutralista-selecionista) quando, ao tomar um elevador, me vi face a face com ele! Assumi minha tietagem e pedi-lhe um autógrafo (ver figura). É um dos meus mementos mais preciosos. 
 

Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
10/03/2006