O Indiana Jones do núcleo atômico

O neozelandês Ernest Rutherford (1871-1937) formulou um novo modelo de átomo essencial para explicar a radioatividade.

No limiar do século 20, os cientistas já estavam convencidos da existência dos átomos, mas sabiam muito pouco sobre a sua constituição. Um nome foi crucial para o entendimento dessa questão: o neozelandês Ernest Rutherford (1871-1937). Ele propôs a existência do núcleo atômico e forneceu ao mundo um novo modelo do átomo, essencial para explicar a radioatividade. Ao lado do francês Henri Becquerel (1852-1908) e da franco-polonesa Marie Curie (1867-1934), ele é reconhecido como um dos ícones do estudo desse fenômeno.

Em 1896, Becquerel relatara a observação da emissão de radiação por sais de urânio enquanto realizava um experimento com placas fotográficas – o fenômeno logo foi interpretado como a radioatividade natural. Mas a contribuição relevante de Becquerel limitou-se ao relato do fenômeno, como mostra um exame atento dos trabalhos da época.

O entendimento detalhado da questão coube a Marie Curie, sobretudo com a descoberta de novos elementos radioativos, e a Rutherford, que investigou a natureza da radiação emitida pelos materiais radioativos, tendo para isso que penetrar no átomo, qual um arqueólogo em busca de uma civilização perdida. 

De fato, Rutherford é um verdadeiro Indiana Jones do núcleo atômico. O que ele escavava era o próprio interior do átomo, em busca do entendimento das misteriosas emissões radioativas que vinham sendo observadas em laboratório. Por seu trabalho, ele foi reconhecido com a mais alta condecoração que um cientista pode receber. Há um século, precisamente em 10 de dezembro de 1908, a Real Academia de Ciências da Suécia concedia-lhe o Nobel de Química “por suas investigações sobre a desintegração dos elementos, e a química das substâncias radioativas”.

Inauguramos com a coluna de hoje uma série de três artigos que analisarão o legado do neozelandês.

O casal Curie
No final de 1897, a pesquisa sobre os raios observados por Becquerel encontrava-se estagnada. O próprio Henri nada publicava a respeito desde maio de 1896. A perspicaz Marie Curie, que buscava um tema para sua tese de doutorado, tratou de desenvolver, com a colaboração do marido Pierre (1859-1906), um método revolucionário para estudar a radiação do urânio.

Pierre e Marie Curie em seu laboratório no início do século 20. O casal trouxe contribuições substanciais ao entendimento da radioatividade, pelas quais recebeu o Nobel de Física de 1903 (Marie receberia também o prêmio de Química em 1911 após a morte do marido).

Em vez do método qualitativo da impressão em chapa fotográfica, utilizado até então, Marie e Pierre passaram a quantificar a radiação pelo efeito de ionização que ela produzia no ar. Foi graças à precisão dessa técnica que novos elementos químicos radioativos foram prontamente descobertos.

Marie afirmava, já no primeiro trabalho para a Academia Francesa de Ciências, apresentado em 12 de abril de 1898 (o trabalho fora submetido por Gabriel Lippmann, já que o casal não era filiado à instituição):

“Todos os minerais que se mostraram ativos contêm os elementos ativos. Dois minerais de urânio – a pechblenda e a calcolita – são muito mais ativos do que o próprio urânio. Esse fato é muito notável e leva a crer que esses minerais podem conter um elemento muito mais ativo do que o urânio”.

Marie tinha razão. Três meses depois, exatamente em 18 de julho, a Academia tomava conhecimento da descoberta do polônio, e um novo termo entrou na literatura científica: radio-actif. Ao apagar das luzes daquele ano, em 26 de dezembro, o casal Curie, em colaboração com Gustave Bémont, anunciou a descoberta de mais um elemento radioativo: o rádio.

De Montreal a Manchester
Enquanto isso, Rutherford se instalava em Montreal (Canadá), onde passaria nove anos como professor de física da Universidade McGill. Ele vinha de um doutorado no famoso laboratório Cavendish da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, orientado pelo não menos famoso J.J. Thomson (1865-1940).

Rutherford chegou ao Canadá no dia 20 de setembro de 1898 e já em janeiro do ano seguinte publicou um artigo com 54 páginas, hoje considerado um dos clássicos da literatura científica. Trata-se do trabalho no qual ele descobre que as emissões radioativas contêm, no mínimo, dois tipos de raios, alfa e beta.

O esquema representa um núcleo pesado (como o de urânio) emitindo uma partícula alfa, que equivale ao núcleo de um átomo de hélio (arte: Wikimedia Commons).

O neozelandês levou mais de cinco anos de árduo trabalho para descobrir que os raios alfa resultam da dupla ionização do átomo de hélio. Assim, os raios alfa não são raios, mas partículas exatamente iguais aos núcleos de hélio.

O primeiro artigo publicado por Rutherford em 1906 foi o último em que ele usou a denominação raios alfa. No trabalho seguinte ele já utilizou partícula alfa. Convencido de que aquela partícula poderia servir como sonda para mergulhar no interior do átomo, Rutherford iniciou um programa de pesquisa que ficou conhecido como espalhamento de partículas alfa.

As circunstâncias lhe foram favoráveis. Em 1907, o alemão Arthur Schuster (1851-1934) aposentou-se voluntariamente para deixar sua vaga na Universidade de Manchester para Rutherford. Manchester já era naquela época um dos grandes celeiros científicos da Inglaterra. Ali Rutherford teve auxiliares de peso, como o descobridor do nêutron, James Chadwick (1891-1974), ou um dos futuros pais da mecânica quântica, o dinamarquês Niels Bohr (1885-1962).

Entre os dez mais
Foi com o espalhamento de partículas alfa que, em 1911, Rutherford chegou ao modelo atômico que deu origem à teoria quântica, nas mãos de Niels Bohr em extraordinário trabalho realizado em 1913. O experimento de Rutherford ocupa o nono lugar entre os dez mais belos experimentos da física, segundo enquete realizada em 2002 com os leitores da revista Physics World.

Sob o ponto de vista epistemológico, a história do projeto é magnífica. O início se deu ainda em Montreal, quando Rutherford percebeu que o feixe de raios alfa (ele ainda não sabia que se tratava de partículas) era mais disperso no ar do que no vácuo. Isso levou-o a supor que se tratava da interação dos raios alfa com as partículas do ar. A partir daí, ele começou a bombardear diferentes materiais com partículas alfa.

Entre 1908 e 1909, o alemão Hans Geiger (1882-1945) e o britânico Ernest Marsden (1889-1970) realizaram a experiência definitiva, bombardeando uma fina folha de ouro com partículas alfa. Como era de se esperar, a maioria das partículas atravessava a folha apresentando pequenos desvios. Algumas, no entanto, surpreendentemente atingiam a folha e voltavam – era como se uma bala de revólver retornasse ao ser atirada contra uma folha de papel.

O esquema representa, à esquerda, o resultado esperado do experimento de Rutherford caso o modelo atômico de Thomson fosse verdadeiro: as partículas atravessariam o “pudim de ameixas”. O resultado observado, no entanto, foi o representado à direita: algumas partículas foram desviadas e outras ricochetearam. O resultado levou Rutherford a propor um novo modelo atômico, no qual a massa está concentrada no núcleo (arte: Wikimedia Commons).

A explicação do espalhamento das partículas alfa baseava-se no modelo atômico de Thomson – o famoso professor do Laboratório Cavendish, o homem que descobrira o elétron em 1897. Chamava-se pudim de ameixa, o modelo. O pudim representava as cargas positivas (ainda não existia o próton, nem o núcleo), enquanto as ameixas representavam os elétrons.

De acordo com esse modelo, os pequenos desvios das partículas alfa podiam ser entendidos como resultado da interação eletrostática com a carga positiva do pudim. Desvios maiores eram atribuídos a múltiplos espalhamentos. Porém, esses múltiplos espalhamentos não conseguiam explicar o retorno (ou retroespalhamento) das partículas.

O novo átomo e a era nuclear
Ninguém sabe exatamente quando Rutherford teve a luminosa idéia de propor um modelo atômico diferente. Mas é certo que foi dois anos depois das medições de Geiger e Marsden. Entre o final de 1910 e o início de 1911, ele pediu que Geiger repetisse as medidas, para tentar calcular os espalhamentos em grandes ângulos e os retroespalhamentos. Tudo foi explicado supondo que o átomo era constituído por um pequeno núcleo, em torno do qual orbitavam os elétrons. O núcleo continha a carga positiva e praticamente toda a massa do átomo.

Niels Bohr, que fazia então um estágio de pós-doutorado ao lado de Rutherford, foi o responsável pelo tratamento teórico desse novo átomo. Lançavam-se ali as bases daquela que hoje chamamos de “a velha teoria quântica”. Foi um passo decisivo para a elaboração, por volta de 1925, da teoria quântica como a conhecemos, cujos autores principais são o alemão Werner Heisenberg (1901-1976) e o austríaco Erwin Schrödinger (1887-1961), ambos agraciados com o Nobel de física, em 1932 e 1933, respectivamente.

Rutherford seguiu sua trilha, perscrutando o núcleo atômico. Em 1919, produziu a primeira desintegração artificial, bombardeando átomos de nitrogênio com a sua ferramenta predileta – partículas alfa. Nesse experimento, ele descobriu o próton e levantou a hipótese da existência de outra partícula neutra, com massa semelhante à do próton: o nêutron, descoberto 13 anos mais tarde por seu colaborador Chadwick.

Do nêutron até a fissão nuclear foi um salto, embora Rutherford, falecido às vésperas da Segunda Guerra, não tenha sobrevivido para assistir aos usos bélicos e pacíficos da energia atômica. Mas essa história é longa e interessante demais para ficar espremida neste fim de coluna: voltamos ao tema no próximo mês.


Carlos Alberto dos Santos
Colunista da CH On-line
Professor aposentado pelo Instituto de Física
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
27/06/2008