O maior desastre da história da medicina

A simples menção à talidomida causa medo em muitas pessoas até hoje, embora 50 anos tenham se passado desde que essa droga causou o maior desastre da história da medicina. Apesar de esse triste episódio ter ocorrido há tanto tempo, somente agora a ciência começa a desvendar os mistérios associados ao uso indevido desse composto.

A talidomida (C13H10N2O4) foi originalmente desenvolvida em 1957 pela companhia farmacêutica alemã Chemie-Grünenthal. Os estudos realizados na época indicaram que a talidomida era um medicamento que apresentava baixo risco de intoxicação, sendo considerado seguro e com poucos efeitos colaterais e podendo inclusive ser adquirido sem a necessidade de prescrição médica.

Além disso, os testes indicavam que essa droga poderia ser empregada no tratamento de uma infinidade de problemas, desde irritabilidade e baixa concentração até ansiedade, insônia, hipertireoidismo e doenças infecciosas. Contudo, seu uso popularizou-se como droga efetiva para o combate aos enjoos matinais que ocorrem frequentemente no início da gravidez (de 4 a 10 semanas).

A talidomida popularizou-se como droga para o combate aos enjoos matinais do início da gravidez

O emprego da talidomida disseminou-se e essa droga passou a ser utilizada em 46 países, alcançando rapidamente níveis de venda extraordinários. Somente na Alemanha, por exemplo, foram vendidas quase 15 toneladas de caixas de talidomida apenas em 1961.

Entretanto, inexplicavelmente a avaliação da talidomida realizada na época não teve abrangência suficiente, pois não foram realizados testes de teratogenicidade, ou seja, possibilidade de desenvolvimento de anomalias que levassem a malformações fetais. E, após algum tempo, essa falha mostrou seus resultados.

O primeiro caso conhecido de malformação congênita relacionada ao consumo de talidomida foi registrado na Alemanha logo após o início de sua comercialização e afetou, coincidentemente, um filho de um trabalhador da própria Chemie-Grünenthal. Nos anos seguintes, os casos de anomalias relacionadas com esse fármaco multiplicaram-se e, em 1961, tornou-se claro que a talidomida estava associada ao aumento significativo do número de defeitos teratogênicos em recém-nascidos.

Essas deformidades caracterizam-se por defeitos no desenvolvimento dos ossos longos dos membros superiores e inferiores. Contudo, a talidomida também está associada a problemas oculares e auditivos – como microftalmia e síndrome dos olhos de gato ou coloboma –, anomalias genitais, neuropatias periféricas e defeitos nos órgãos internos, particularmente nos rins, pulmões, intestino e coração.

Estima-se que mais de 10 mil crianças tenham sido afetadas pelo uso da talidomida. Um número elevado e incalculável de abortos também pode ter sido causado pela droga. Pesquisas realizadas posteriormente indicaram que esse fármaco não é mutagênico e não causa defeitos hereditários.

Mecanismos de ação da talidomida

A compreensão dos mecanismos de ação da talidomida é dificultada devido à bioquímica complexa e às ações múltiplas dessa droga. A talidomida tem dois anéis amida e é considerada um derivado do ácido glutâmico. Em condições fisiológicas, existem duas formas de talidomida com estruturas espaciais diferentes (isômeros), que apresentam propriedades biológicas diferenciadas.

Talidomida
A talidomida pode apresentar duas estruturas diferentes, com propriedades biológicas diferenciadas (imagem: Ben Mills).

Uma dessas formas, conhecida como isômero S(-), é responsável pelos efeitos teratogênicos da talidomida, enquanto a outra, o isômero R(+), parece atuar como sedativo. Contudo, devido à capacidade que essas duas variantes de talidomida têm de se converter uma na outra, não é possível, por exemplo, utilizar terapeuticamente apenas o isômero R(+).

Para ser ativada, a talidomida precisa ser quebrada por diversas enzimas do grupo citocromo P450, o que gera cerca de 20 subprodutos metabólicos. Apesar de existirem indícios de que esses compostos estão associados a diversos eventos fisiológicos, ainda se conhece muito pouco sobre eles.

A taxa de mortalidade das crianças expostas à talidomida durante seu desenvolvimento embrionário é muito elevada – maior que 40% antes do primeiro ano de vida –, devido principalmente a defeitos no coração e rins. Cerca de 90% das crianças sobreviventes apresentam defeitos no desenvolvimento de seus membros.

Prejuízos à formação dos membros

A formação dos membros é um processo complexo e que ocorre quando o plano corporal já está estabelecido e os principais órgãos e tecidos já estão formados. Na espécie humana, o desenvolvimento dos membros se estende entre a 4ª (dia 23) e a 9ª semanas (dia 55) após a fertilização e ocorre das regiões proximais (úmero e fêmur) para as porções distais (dígitos).

Defeitos nos membros são verificados em mães expostas à talidomida entre o 20º e o 36º dias após a fertilização (ou entre o 34º e o 50º dias após o último ciclo menstrual). A ingestão de um único comprido de talidomida durante esse período é suficiente para causar defeitos no feto.

Exposições à talidomida antes do desenvolvimento dos membros resultam em defeitos maiores, enquanto o uso da droga em um período posterior pode ter consequências menos drásticas, afetando apenas a formação dos dedos, por exemplo.

Malformação congênita
Foto de 1962 de um bebê com defeitos nos membros decorrentes do uso de talidomida durante o desenvolvimento embrionário (foto: National Cancer Institute).

O processo de desenvolvimento embrionário dos membros é altamente regulado e apresenta uma série de eventos que podem ser afetados pela ação da talidomida, originando diversos defeitos congênitos, que vão desde a perda total dos membros (amelia), passando pelo seu encurtamento (focomelia), até a perda de dedos.

Na maioria dos pacientes, a talidomida afeta ambos os braços e, em algumas pessoas, braços e pernas são igualmente atingidos. Anomalias apenas nos membros inferiores são mais raras, talvez porque estes se desenvolvam posteriormente.

Mas por que a talidomida afeta apenas a formação dos membros e alguns órgãos específicos e não apresenta uma ação mais disseminada sobre o organismo? E por que essa droga é efetiva apenas durante uma etapa do desenvolvimento embrionário? Algumas pistas obtidas recentemente podem auxiliar na compreensão da ação da talidomida no organismo.

A talidomida destrói vasos sanguíneos imaturos e impede a extensão de vasos já formados, dois fatores devastadores para tecidos em crescimento acelerado e que precisam formar e ampliar sua irrigação sanguínea para nutrir as células em mitose. Esse é o caso dos braços e pernas durante a 4ª e a 9ª semanas de desenvolvimento embrionário.

Alterações no padrão de expressão de alguns genes envolvidos com a sinalização celular, como aqueles que expressam os fatores de crescimento de fibroblastos Fgf8 e Fgf10 (associados com elevações da morte celular programada ou apoptose das células dos tecidos dos membros em desenvolvimento), também parecem estar envolvidas na ação da talidomida durante o período embrionário.

Há indícios de que, durante as semanas em que a talidomida causa seus efeitos nocivos sobre os membros em desenvolvimento, a maior parte dos tecidos do organismo apresenta vasos sanguíneos mais maduros e, portanto, são menos afetados pela ação desse fármaco. Se essa teoria estiver correta, também ficará esclarecido por que a adição dessa droga em um período prévio causa defeitos disseminados e contribui para uma mortalidade elevada e por que exposições posteriores são menos lesivas.

A ‘redescoberta’ da talidomida

Como o mundo dá voltas, a talidomida voltou ao receituário médico recentemente – apesar de ter sido banida em 1962 –, sendo empregada como medicamento sedativo, anti-inflamatório e hipnótico e no combate a hanseníase, doença de Crohn, Aids e alguns tipos de câncer.

Apesar dos terríveis efeitos colaterais, a talidomida é um composto promissor para o combate de diversas doenças

Apesar dos seus terríveis efeitos colaterais, a talidomida é inegavelmente um composto promissor para o combate de diversas enfermidades. Por isso, a ciência tem se dedicado nos últimos anos a criar compostos sintéticos que tenham as funções da talidomida, mas que não possuam seus efeitos nocivos.

Mais de cem substâncias sintéticas estruturalmente similares à talidomida, como a lenalidomida, têm sido produzidas. Algumas dessas têm sido utilizadas no combate a alguns tipos de câncer, como o mieloma múltiplo. Outro desses análogos, conhecido como CPS49, também é utilizado na terapia antitumoral, devido a sua capacidade de impedir a formação de vasos sanguíneos em tecidos-alvo.

À medida que a ciência entenda melhor os mecanismos de ação da talidomida, poderão ser criados medicamentos baseados em análogos sintéticos da talidomida que sejam realmente seguros e extremamente úteis para o combate de uma série de doenças. Assim, poderemos novamente nos render aos encantos dessa velha senhora, evitando a sua cólera.

 

Jerry Carvalho Borges
Departamento de Medicina Veterinária
Universidade Federal de Lavras

(*) Esta coluna marca os 4 anos da parceria entre Jerry Borges e a CH On-line.

 

Sugestões para leitura

Hashimoto,Y. (2008). Thalidomide as a multi-template for development of biologically active compounds. Arch. Pharm. (Weinheim) 341, 536-547.
Knobloch,J. and Ruther,U. (2008). Shedding light on an old mystery: thalidomide suppresses survival pathways to induce limb defects. Cell Cycle 7, 1121-1127.
Melchert,M. and List,A. (2007). The thalidomide saga. Int. J. Biochem. Cell Biol. 39, 1489-1499.
Palumbo,A., Facon,T., Sonneveld,P., Blade,J., Offidani,M., Gay,F., Moreau,P., Waage,A., Spencer,A., Ludwig,H., Boccadoro,M., and Harousseau,J.L. (2008). Thalidomide for treatment of multiple myeloma: 10 years later. Blood 111, 3968-3977.
Paravar,T. and Lee,D.J. (2008). Thalidomide: mechanisms of action. Int. Rev. Immunol. 27, 111-135.
Therapontos,C., Erskine,L., Gardner,E.R., Figg,W.D., and Vargesson,N. (2009). Thalidomide induces limb defects by preventing angiogenic outgrowth during early limb formation. Proc. Natl. Acad. Sci. U.S.A 106, 8573-8578.
Vargesson,N. (2009). Thalidomide-induced limb defects: resolving a 50-year-old puzzle. Bioessays 31, 1327-1336.