O nome errado para o produto certo

 

Visão panorâmica da cidade de São Carlos. Esse pólo industrial e tecnológico no interior de São Paulo vai receber em breve a primeira fábrica de semicondutores da América Latina (foto: Wikimedia Commons).

Como é hábito nesta coluna, sempre que um artefato industrial atinge o imaginário do consumidor, tentamos explicar os fundamentos científicos por trás dessa inovação. Quando li no Jornal da Ciência um comunicado de imprensa da Universidade Estadual Paulista (Unesp) que anunciava a instalação da primeira fábrica de semicondutores da América Latina, não pensei duas vezes para eleger as memórias ferroelétricas como tema da coluna deste mês. Além do impacto da notícia, a pouca visibilidade do tema também justifica a escolha.

Se você não é físico nem engenheiro dedicado ao estudo dos materiais ferroelétricos, tem pouca chance de saber do que se trata. E não precisa ficar se culpando por isso. Existem boas razões para que seja assim. Comparada ao seu primo-irmão, o ferromagnetismo, de quem herdou o nome, a ferroeletricidade é muito menos estudada e divulgada na grande imprensa.

No sistema de busca do portal do New York Times, localizei 11 matérias sobre ferromagnetismo e apenas uma sobre ferroeletricidade. Na Web of Science, grande banco de dados sobre estudos científicos, existem aproximadamente 72 mil artigos sobre ferromagnetismo e 40 mil sobre ferroeletricidade. Nessa mesma base de dados, constam, respectivamente, 1.800 e 432 trabalhos com a participação de brasileiros. Desbravemos, portanto esse horizonte pouco conhecido.

Paralelismo
Por causa da impressionante semelhança entre ferroeletricidade e ferromagnetismo, boa parte do que escrevi na coluna de dezembro de 2007 para explicar este último fenômeno será útil para a compreensão deste texto. Aos momentos de dipolo magnético, responsáveis pela magnetização de um material, correspondem os momentos de dipolo elétrico nos materiais ferroelétricos. Mas, enquanto não temos uma imagem clássica para visualizar o dipolo magnético, o dipolo elétrico é facilmente perceptível.

O esquema representa o titanato de bário, o primeiro composto ferroelétrico a despertar interesse para aplicações tecnológicas. As esferas vermelhas correspondem a átomos de oxigênio, e a branca, um átomo de titânio, submetidos a um campo elétrico externo (setas verdes). Arte: Symetrix Corporation.

Sempre que cargas elétricas de mesmo valor e sinais contrários encontram-se afastadas por uma pequena distância, forma-se um dipolo elétrico. A figura ao lado, por exemplo, representa uma pequena parte da estrutura cristalina do titanato de bário, BaTiO 3 – primeiro composto ferroelétrico a despertar interesse para aplicações tecnológicas. As esferas vermelhas representam átomos de oxigênio, enquanto a pequena esfera branca representa o titânio.

Abaixo de 130º C, esse material apresenta uma distorção estrutural que resulta no deslocamento dos átomos de titânio em relação aos átomos de oxigênio. Como estes são negativos e aqueles positivos, a distorção estrutural origina um dipolo elétrico. Em condições normais, o material apresenta diferentes regiões (domínios) com os dipolos apontando em diferentes direções. Dependendo da sua intensidade, um campo elétrico externo poderá orientar todos os dipolos paralelamente à sua direção.

O interessante é que, depois de retirado o campo externo, os dipolos permanecem orientados naquela direção. Essas propriedades fazem dos ferroelétricos candidatos ideais para a fabricação de capacitores, mas a aplicação que vem despertando o maior interesse é na tecnologia de memórias digitais não voláteis. Nesses materiais, uma vez gravada a informação, ela ali permanecerá por um período que depende do tipo de material e das condições externas às quais ele está sujeito. Na tecnologia de memórias digitais, momentos orientados em determinado sentido correspondem ao bit “0”, enquanto momentos orientados no sentido inverso correspondem ao bit “1”.

Para concluir o paralelismo entre materiais ferromagnéticos e ferroelétricos, devemos notar que estes também apresentam o fenômeno da histerese, que tem o mesmo formato da histerese magnética. Na curva de histerese vista na coluna de dezembro de 2007, basta substituir campo magnético aplicado por campo elétrico aplicado, magnetização por polarização e coercividade por campo elétrico coercivo.

Foi essa semelhança de comportamento que induziu os primeiros estudiosos a usarem a denominação ferroelétrico para esses materiais. O nome pode causar alguma confusão, fazendo crer que os materiais são à base de ferro. Na verdade, são raros os ferroelétricos que contêm ferro.

Confecção de memórias
A possibilidade de usar esses materiais para a confecção de memórias foi vislumbrada já nos anos 1950, mas dificuldades na preparação de materiais apropriados e os desafios da integração dos dispositivos naquilo que se costuma chamar de eletrônica do silício impediram a realização de projetos comercialmente competitivos.

Vejamos um exemplo: para orientar os dipolos de um cristal com dimensões micrométricas, são necessários alguns quilovolts, algo impraticável em dispositivos comerciais, cujas voltagens devem ser inferiores a 5 V. A relativa facilidade de fabricação de memórias magnéticas empurrou para o futuro o foco nas memórias ferroelétricas.

Esse futuro começou a ser vislumbrado na passagem da década de 1960 para 1970, com o refinamento das técnicas de filmes finos. Um filme de PbTiO 3 com espessura de aproximadamente 100 nanômetros requer alguns volts para atingir total polarização.

Mesmo assim, enormes problemas técnicos continuaram desafiando físicos, químicos e engenheiros ao longo de mais de duas décadas, até que uma solução comercialmente aceitável fosse encontrada. Essencialmente, os pesquisadores tinham que enfrentar dois problemas: preparação de materiais ferroelétricos adequados e integração em diversos chips e outros dispositivos.

Um problema crucial é que, para funcionar como memória não volátil, o material deve reter a informação pelo maior período de tempo possível. Além disso, como usualmente informações são gravadas e apagadas, ele deve suportar o maior número possível de ciclos de gravação sem apresentar degradação (tecnicamente conhecida como fadiga). Um exemplo muito conhecido é a degradação das baterias de celulares depois de vários processos de carga.

As pesquisas indicaram que o PZT, um dos ferroelétricos mais estudados, obtido pela substituição de titânio por zircônio no composto PbTiO 3 , perde sua capacidade de memória depois de um milhão de ciclos de gravação. Em 1995, pesquisadores da Symetrix (uma das empresas envolvidas na instalação da fábrica de São Carlos) e da Universidade do Colorado, em Colorado Springs, desenvolveram um capacitor ferroelétrico, à base de camadas de filmes finos do composto SrBi 2 Ta 2 O 9 , praticamente livre de fadiga. Ele é capaz de suportar mais de um trilhão de ciclos de inversão da polaridade, o processo responsável pela gravação. Trata-se de um número extraordinariamente grande.

Dois anos antes, a empresa havia tido um grande sucesso. Em colaboração com a Matushita, uma subsidiária da Panasonic, ela incorporou capacitores ferroelétricos em circuitos integrados usados em telefones celulares operando na faixa de 2 a 3 GHz. Pela façanha, ganharam o Prêmio Nikkei Shimbun como Produto do Ano de 1994.

MRAM ou FeRAM?

Memória ferroelétrica de 4 megabits produzida pela Ramtron (reprodução / Ramtron).

Na coluna de agosto, consideramos a corrida industrial para a fabricação das memórias magnéticas de acesso aleatório (MRAM, na sigla em inglês). As memórias ferroelétricas de acesso aleatório (FeRAM, na sigla em inglês) se apresentam como concorrentes das MRAM. Quem ganhará a corrida? Ninguém sabe.

Consultei Carlos Paz de Araújo, fundador e principal executivo da Symetrix, sobre os prós e contras dessas alternativas. Nada mais natural do que esperar dele uma resposta amplamente favorável às FeRAM.

Para ele, os principais problemas das MRAM são preço e dificuldade de integração nos dispositivos onde houver necessidade de memória. Ele acredita que a capacidade limite de uma MRAM não passará de 16 megabits (16 Mb) ou 2 megabytes (2 MB). Uma MRAM de 4 megabits já é comercializada pela Freescale (ex-Motorola). Não custa lembrar aqui a diferença entre as unidades bit (b) e byte (B): Um byte corresponde a 8 bits.

Embora a não volatilidade seja uma característica mais do que atraente dessas memórias, sua capacidade de armazenamento ainda é muito pequena. Para se ter uma idéia, a maioria dos computadores atuais vêm com memórias RAM de 1 gigabyte, ou seja capacidade de armazenamento 500 vezes superior ao limite estimado acima.

Por outro lado, o processo de fabricação de uma FeRAM é muito mais simples e barato, e sua operação requer muito menos potência do que uma MRAM. Essa baixa potência é conseqüência do fato de que o dispositivo é ativado por voltagem, em vez de corrente, como no caso das MRAM. Em comparação às memórias Flash, é interessante notar que as FeRAM usam apenas 10% da potência daquelas.

O pulo do gato para a fábrica de São Carlos

Os chips  usados em telefones celulares são bons exemplos de contatos em circuitos integrados de cartões inteligentes, similares aos que serão produzidos na fábrica de São Carlos (foto: Hywel Clatworthy).

E o que dizer da fábrica a ser instalada em São Carlos? Em primeiro lugar, convém aprender com a história. São Carlos ganhou essa fábrica porque se encontra na região do país onde mais se investe em pesquisa científica e tecnológica. Seja como for, qualquer que fosse o local escolhido, é importante considerar que esse tipo de fábrica é apropriado para as condições científicas e tecnológicas do Brasil.

O pessoal da Symetrix desenvolveu um processo pelo qual a memória ferroelétrica é depositada sobre uma pastilha de silício pronta, com toda a parte lógica preparada em outra instalação industrial, em qualquer outro local. O interessante aqui é que o valor agregado de até 10 vezes não está na pastilha com a parte lógica, mas na integração da memória, a ser feita em São Carlos.

Portanto, na verdade, a nova fábrica não produzirá semicondutores, mas promoverá a integração de memórias ferroelétricas a diversos dispositivos, entre os quais os cartões inteligentes – esse processo utiliza técnicas típicas de fábricas de semicondutores, daí o nome.

Para se ter uma idéia dos valores, observe que uma pastilha de silício de 8 polegadas, com a lógica pronta, custa aproximadamente 700 dólares. Depois que a FeRAM for integrada, o preço deverá passar de 10 mil dólares. O projeto da fábrica prevê a produção de no mínimo 4 mil dessas pastilhas por mês.

Em breve, a parceria do magnetismo com a ferroeletricidade
Descrevemos nesta coluna os materiais ferroelétricos explorando suas similaridades com os materiais ferromagnéticos. Sendo tão similares, por que não ouvimos falar de materiais que apresentam ambas as propriedades? São raros, mas existem, e são denominados materiais multiferróicos. A expectativa é que eles possam ser usados em dispositivos onde ambos os fenômenos sejam atuantes. Mas essa é outra história, que está só no começo e pode aguardar melhor oportunidade para ser contada. 


Carlos Alberto dos Santos
Colunista da CH On-line
Professor aposentado pelo Instituto de Física
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
24/10/2008