O objeto ignorado de Leon Chua

Se você já teve alguma instrução sobre eletricidade, por elementar que tenha sido, sabe que são três os elementos passivos de um circuito elétrico: resistor, capacitor e indutor. O funcionamento de um circuito envolve ainda quatro variáveis fundamentais: carga elétrica (q), corrente elétrica (i), voltagem (v) e fluxo magnético (Φ). Essas variáveis formam seis pares: (q,i), (q,v), (v,i), (Φ,i), (Φ,v), (Φ,q). As relações entre os cinco primeiros constituem leis e equações conhecidas desde o século 19.

Em 1971, o norte-americano Leon Chua (1936-), professor de engenharia elétrica da Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA), resolveu investigar a sexta relação, aquela entre fluxo magnético e carga elétrica. Em artigo publicado na IEEE Transactions on Circuits Theory, ele mostrou que ela levaria a um dispositivo que, apesar de parecido com uma resistência, apresentaria um comportamento muito bizarro.

Ele mostrou que, em vez de ser constante, como nos resistores comuns, a propriedade resultante da relação entre fluxo magnético e carga elétrica teria um comportamento não linear em termos das variáveis voltagem e corrente. Ou seja, a propriedade teria valores diferentes para diferentes pares (v,i). Dependendo do modo como se aplicasse a voltagem, o dispositivo apresentaria diferentes valores de corrente e, consequentemente, diferentes valores de resistência.

Esse comportamento indica que o dispositivo teria memória. Em outras palavras, ele “saberia” que, por determinado caminho, a resistência deveria ser diferente daquela obtida quando a voltagem fosse aplicada de outro modo. Por causa disso, Chua denominou o dispositivo de memristor (acrônimo para memory resistor). Trata-se, portanto, de um resistor que tem memória.

Outras propriedades esquisitas do dispositivo foram descobertas a partir das equações deduzidas por Chua. Além de depender da intensidade e da polaridade da voltagem aplicada e do inverso do quadrado das dimensões do resistor, a resistência dependeria do tempo durante o qual a voltagem permanecesse aplicada. Quando a voltagem fosse desligada, o memristor manteria aquela resistência por tempo indefinido, talvez para sempre, até que nova voltagem fosse aplicada. Portanto, o memristor teria memória permanente, não volátil (no jargão da informática), e seria mais evidente em dispositivos eletrônicos com dimensões em escala nanométrica. .

Durante mais de 35 anos esse dispositivo foi visto apenas como uma curiosidade matemática, uma brincadeira criativa de Leon Chua, um renomado especialista em teoria de circuitos elétricos não lineares. Ninguém conseguia fabricar um memristor, até que, no final de 2007, uma equipe da Hewlett Packard (HP) liderada por R. Stanley Williams conseguiu a façanha, sem que esse fosse o objetivo da pesquisa.

Quanto menor, melhor

Representação esquemática das camadas do dispositivo nanométrico do tipo ‘sanduíche’ produzido pela equipe de R. Stanley Williams na HP.

Em 1995, as previsões apontavam para o colapso, por volta de 2010, da tecnologia baseada no silício. A alternativa poderia ser o que hoje conhecemos como eletrônica molecular, uma área que vinha despertando grande interesse na comunidade científica. Stanley orientou sua equipe para trabalhar nessa área, em busca de computadores em escala nanométrica.

O grupo começou fabricando um dispositivo tipo sanduíche. Nas partes externas, camadas de platina (Pt) com espessura inferior a 3 nanômetros (o nanômetro é a bilionésima parte do metro). A primeira camada de platina foi oxidada, para formar o óxido PtO 2 , e sobre ela foi depositada uma finíssima camada molecular de um composto orgânico para facilitar a fixação da próxima camada, constituída de titânio (Ti), com espessura inferior a 3 nanômetros. Finalmente, vinha a segunda camada de platina.

Qualquer pesquisador da área de nanomateriais sabe que esse tipo de estrutura inevitavelmente apresenta muitos defeitos, mas Stanley sabia que era possível construir um computador que tolerasse defeitos em alguns componentes. Bastava providenciar redundância de componentes, algo possível com uma arquitetura de barras cruzadas, por meio da qual é possível construir milhares de “sanduíches” que servirão para armazenar bits.

Para o dispositivo funcionar é necessário aplicar uma voltagem e medir a corrente para se calcular a resistência. Se ela for próxima de zero, diz-se que o sistema está no estado de bit “1”. Se a resistência for grande, o sistema está no estado de bit “0”.

Mil vezes maior

R. Stanley Williams, físico que liderou a equipe da HP responsável pela obtenção do primeiro memristor de que se tem notícia (foto: Steve Jurvetson).  

Os resultados obtidos por Stanley e sua equipe foram espetaculares. A resistência associada ao bit “0” era mil vezes maior do que aquela associada ao bit “1”. Quanto maior esse fator, mais eficiente a memória – para outros materiais ele não passava de 10. Mais impressionante do que isso: ao contrário de outros dispositivos, feitos com materiais diferentes, o de platina era estável, apresentava os mesmos resultados ao longo de vários anos.

Mas os pesquisadores da HP não sabiam explicar o mecanismo responsável pelos fenômenos observados. Eles tinham um dispositivo que funcionava, mas não sabiam por quê. E seis anos haviam decorrido desde o início das pesquisas. De repente, um dos membros da equipe descobriu o artigo de Leon Chua, que completava então 31 anos de publicação. Apesar disso, esse trabalho era – e continua sendo – pouco conhecido pela comunidade científica. Um levantamento na Web of Science mostra que ele recebeu apenas 34 citações, sendo 16 nos anos 2000.

Stanley precisou de dois anos para entender toda a matemática utilizada no artigo, mas não compreendia como a junção molecular tinha algo a ver com a relação entre carga e fluxo magnético – a propriedade básica do memristor descrito por Chua.

Em 2004 eles conseguiram fazer uma “cirurgia” nos seus nanossanduíches e viram, pela primeira vez, a parte do “recheio”, onde deveria haver o óxido de platina, a camada molecular e a camada de titânio. Os pesquisadores tomaram um choque quando examinaram o conteúdo encontrado. O óxido de platina havia desaparecido. Na camada de titânio, em vez do metal puro, havia uma camada de óxido de titânio, mas não era uma camada normal. Era uma bicamada. Na parte adjacente à camada molecular, havia o óxido usual, estequiométrico (TiO 2 ) e, na parte superior, um óxido com deficiência em oxigênio.

O fim do mistério

Foto do primeiro memristor sintetizado nos laboratórios da HP (foto: R. Stanley Williams / HP Laboratories).

Foi fácil explicar o que tinha acontecido. O titânio “roubara” todo o oxigênio do óxido de platina, deixando esse metal em seu estado puro. A camada deficiente em oxigênio tinha uma lacuna para cada oxigênio faltante. Como o oxigênio é um íon negativo, a lacuna corresponde a um íon positivo, e comporta-se como tal.

Agora o cenário fazia sentido, e Stanley percebeu que eles estavam diante de um dispositivo que correspondia à descrição do memristor feita por Leon Chua. As camadas de óxido de titânio são os responsáveis pela variação da resistência em função da voltagem aplicada – o fenômeno básico do memristor. O óxido de titânio puro, TiO 2 , tem resistência elétrica muito maior do que aquele deficiente em oxigênio.

Quando se aplica uma voltagem positiva no terminal próximo ao óxido deficiente, as lacunas migram para o outro lado, aumentando a espessura da camada condutora e, assim, diminuindo a resistência do sanduíche. Diz-se que, nesse estado, o dispositivo está “ligado”, correspondendo ao bit “0” ou ao bit “1”, como preferir. Quando se aplica uma voltagem negativa, esta atrai as lacunas, diminuindo a espessura da camada condutora, o que significa dizer que a resistência aumenta. O dispositivo fica no estado “desligado”.

A equipe da HP acha que o memristor vai mudar a tecnologia de circuitos eletrônicos no século 21 de modo tão radical quanto o transistor mudou a tecnologia do século 20. Os progressos alcançados nessa área por essa empresa são extraordinários, mas talvez seja mais prudente alargar o horizonte tecnológico que vai dominar o século 21, e aí colocar um papel importante a ser desempenhado pelo memristor. Esse horizonte tecnológico mais amplo tem um nome: eletrônica molecular ou eletrônica nanométrica.

O otimismo do pessoal da HP fundamenta-se na expectativa de que sua arquitetura de barras cruzadas possa ser utilizada na fabricação de computadores nanométricos tolerantes a defeitos e comercialmente competitivos. Além disso, o comportamento do memristor é similar à sinapse, a junção responsável pela comunicação entre os neurônios. Dominar o memristor poderá ser a porta de entrada para a biofísica, na mais rigorosa acepção da palavra. 


Carlos Alberto dos Santos
Colunista da CH On-line
Professor aposentado pelo Instituto de Física
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
23/01/2009