O predador dos mares

Paleontólogos brasileiros anunciaram esta semana uma importante descoberta que deve nos ajudar a entender como evoluíram os répteis que habitaram os mares do passado. O Guarinisuchus munizi, encontrado em Pernambuco, viveu na costa do Nordeste brasileiro há cerca de 62 milhões de anos e é o mais completo representante na América do Sul de um grupo de répteis conhecidos como dirossaurídeos.

Os dirossaurídeos, por sua vez, se incluem em um grupo mais amplo, que possui uma história única no registro geológico da Terra: os crocodiliformes. Esses répteis surgiram há aproximadamente 200 milhões de anos e sobreviveram a diversos eventos de extinção em massa no planeta até chegar aos dias de hoje. Nesse intervalo, eles se modificaram e se adaptaram com o passar do tempo.

Hoje esses répteis contam com apenas 23 espécies, representando três grupos: jacarés, crocodilos e gaviais. Mas no passado, como já vimos em outra coluna , a diversidade era enorme, com espécies de hábitos completamente terrestres e outras totalmente marinhas, como a que acaba de ser descoberta.

Descoberta inesperada
Há cerca de cinco anos, os colegas José Antonio Barbosa e Maria Somália S. Viana estavam realizando uma atividade de campo rotineira na Mina Poty, situada ao norte de Recife (PE). Essa mina é um dos poucos lugares no Brasil onde se registra o limite entre os períodos geológicos Cretáceo e Paleógeno  (ou K/Pg – antigo K/T). Esse limite marca a extinção de diversos grupos, incluindo a maioria dos dinossauros.

Antonio e Somália encontraram, cerca de 11 metros acima do limite K/Pg, ossos e dentes envoltos em rochas calcárias de coloração cinza. No início não estava bem claro a que animal pertenciam, mas eles sabiam que era algo muito importante. Até então, os únicos vertebrados que aquelas camadas – designadas de Formação Maria Farinha – tinham fornecido eram dentes de tubarões, peixes ósseos, placas de tartarugas e ossos isolados de crocodiliformes marinhos do grupo dos dirossaurídeos.

Esse grupo de répteis, bastante raro na América do Sul, foi um dos poucos a ter sobrevivido à extinção do K/Pg. No Brasil, seus restos sempre se limitaram a ossos isolados – basicamente vértebras e dentes –, justamente da Mina Poty e arredores. Existia, ainda, um exemplar meio obscuro que tinha recebido o nome de Hyposaurus derbi no século 19.

Reconhecendo a importância da descoberta, eles coletaram os ossos e iniciaram a penosa tarefa de preparação do material, que contou, além de Antonio, com um grande esforço de Marcia Cristina da Silva, então aluna de Somália. A preparação acabou sendo finalizada no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com financiamento da Faperj (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro).

O mais completo dirossaurídeo sul-americano
À medida que a preparação avançou, constatou-se que o exemplar em questão era não só o mais completo representante dos dirossaurídeos da América do Sul, mas também uma nova espécie, que recebeu o nome de Guarinisuchus munizi. ‘Guarini’ vem do tupi e significa guerreiro; ‘suchus’ é um termo que vem do grego e é comumente empregado na descrição de crododiliformes extintos. Com o nome específico os pesquisadores fizeram uma justa homenagem ao paleontólogo Geraldo da Costa Barros Muniz, que muito contribuiu para a pesquisa de fósseis no Nordeste.

De forma geral, os dirossaurídeos possuem a parte anterior do crânio relativamente comprida e fina lateralmente, o que lhes dá um aspecto tubular. Os dentes são grandes, delgados e pontudos, o que os diferencia bem dos demais crocodiliformes, incluindo as formas recentes. O Guarinisuchus munizi também possui as aberturas temporais na parte superior do crânio bem desenvolvidas, maiores do que as órbitas, outra característica que permite classificá-lo no grupo dos dirossaurídeos.

Poucos dirossaurídeos são conhecidos, a maioria procedente de depósitos da África. O estudo dos cientistas brasileiros mostrou que o Guarinisuchus munizi era aparentado com algumas formas africanas, o que permitiu estabelecer uma teoria sobre a dispersão desses animais: a partir de sua suposta origem na África, eles teriam chegado primeiro à América do Sul para, dali, alcançar o litoral da América do Norte.

Porém, existe um outro ponto de destaque dessa pesquisa, publicada esta semana na Proceedings of the Royal Society B, com participação deste colunista. Na Mina Poty, as rochas do período Cretáceo, que são mais antigas do que 65 milhões de anos (situadas, portanto, baixo do limite K/Pg), possuem restos (sobretudo dentes) de um outro grupo de répteis marinhos chamado de mosassauros ou lagartos marinhos.

Esses restos haviam sido estudados primeiramente pelo importante pesquisador brasileiro Llewellyn Ivor Price (1905-1980). Uma nova análise do material, feita pelos paleontólogos Luciana Carvalho e Sergio Azevedo (ambos do Museu Nacional), indicou a existência de uma diversidade de mosassauros, com várias espécies.

Substitutos dos mosassauros?
Sabendo disso e levando em conta também que, acima do limite K/Pg, não são mais encontrados restos de mosassauros, mas sim o Guarinisuchus munizi, Antonio e seus colegas puderam propor uma hipótese. Os pesquisadores acreditam que, após a extinção dos mosassauros, os dirossaurídeos passaram a ser os principais predadores dos mares do passado nas antigas costas brasileiras.

Resta agora saber se esse padrão de substituição dos mosassauros por animais como o Guarinisuchus munizi foi algo local, restrito ao Brasil, ou um fenômeno mundial, como acreditam os autores. Para que se tenha uma melhor avaliação dessa hipótese, são necessários agora estudos mais detalhados da distribuição dos dirossaurídeos e dos mosassauros.

Além disso, seria importante que houvesse mais estudos estratigráficos, particularmente na África, onde os dados geológicos dos lugares com restos desses répteis extintos ainda são meio confusos.

Uma reconstrução em vida de Guarinisuchus munizi de 3 metros, ambientada com fósseis originais da Mina Poty, encontra-se exposta no Museu Nacional, situado no parque da Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão, na Cidade Maravilhosa. Esse belíssimo trabalho, com um realismo fora do comum graças ao excelente trabalho do paleoescultor Claudio Salema e do museólogo João Carlos Ferreira, retrata essa “fera” dos mares que aterrorizava as costas nordestinas há 62 milhões de anos.

Alexander Kellner
Museu Nacional / UFRJ
Academia Brasileira de Ciências
26/03/2008

Confira mais imagens da pesquisa

Paleocurtas
As últimas do mundo da paleontologia

(clique nos links sublinhados para mais detalhes)

Uma réplica de um dinossauro T. rex completo encontra-se montada no Brasil, na Escola Parque do Conhecimento, em Santo André (SP). O exemplar tem 13 metros de comprimento e sua cópia foi feita a partir do material original depositado no Museu das Rochosas em Montana, Estados Unidos. Além desse dinossauro, outros sete modelos de répteis mesozóicos integram a exposição, que está aberta ao público na rua Juquiá, s/n, Bairro Paraíso. O projeto foi coordenado pelo colega Luiz Anelli, da Universidade de São Paulo (USP).
Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) acabam de publicar um estudo sobre a fauna de invertebrados da Formação Poloniz Cove, com idade de cerca 30 milhões de anos, na Ilha Rei George, Antártica. A pesquisa, coordenada por Fernanda Quaglio e publicada na Antarctic Science , revelou a presença de diversos grupos, como braquiópodos, equinodermas e briozoários, além de duas novas espécies de bivalves, e teceu considerações a respeito da dispersão desses invertebrados no continente gelado.
Acaba de ser publicada na Acta Palaeontologica Polonica a descoberta de novos dinossauros terópodes do Niger. Uma dessas espécies recebeu o nome de Kryptops palaios e representa o mais primitivo membro do grupo Abelisauridae. O segundo, chamado de Eocarcharia dinops, pertence ao grupo Carcharodontosauridae. O estudo foi realizado por Paul Sereno e Stephen Brusatte, da Universidade de Chicago (EUA), e contribui para o conhecimento da diversidade de dinossauros no continente africano.
Um novo pterossauro chinês foi descrito por Brian Andres, da Universidade de Yale (EUA), e Ji Qiang, da Academia de Geologia da China, em Pequim. O Elanodactylus prolatus foi encontrado nos famosos depósitos de Liaoning, com cerca de 125 milhões de anos, e exibe características tidas como únicas do grupo Azhdarchidae, que reúne alguns dos maiores animais voadores já encontrados. A nova espécie também exibe diversas características primitivas, possibilitando uma nova proposta para a relação de parentesco entre diversos grupos desses répteis voadores. O estudo foi publicado na Palaeontology .
Pesquisadores liderados por Vincent Perrichot, do Museu de História Natural da Universidade de Humboldt, em Berlim (Alemanha), encontraram penas fósseis preservadas em âmbar em rochas cretáceas (100 milhões de anos) na França. O material representa um estágio intermediário entre estruturas tidas como penas primitivas e as penas modernas, daí a importância desse estudo, publicado na Proceedings of the Royal Society .
Gregory Dietl, do Instituto de Pesquisa Paleontológica, em Nova York (EUA) e Franciso Veja, da Universidade Nacional Autônoma (México) relatam na Biology Letters a descoberta de um caranguejo fóssil. O animal viveu durante o Cretáceo e era especializado em quebrar conchas, provavelmente de moluscos, dos quais deveria se alimentar. O achado contradiz teorias anteriores, segundo as quais esse tipo de organismo teria surgido apenas no Cenozóico.