Quem vos fala é Nicolas Durand de Villegagnon, isso mesmo, o primeiro europeu a ocupar a baía de Guanabara. Na verdade, quem está aqui, naturalmente, é o meu fantasma; vocês aprenderam nos livros de história que eu morri em 1571, e é verdade.
Esses mesmos livros dizem que eu sou pirata, mas isso é mentira. Eu sou soldado, almirante, cientista, explorador, mas não pirata. Os piratas franceses vieram pra cá mais tarde, em 1710 e 1711, e juro que não era eu.
Estive aqui de 1555 a 1558, me estabeleci com meus 600 homens na baía de Guanabara, na ilha que hoje leva meu nome, até aquele chato, feio e bobo do Estácio de Sá tirar a gente de lá.
Foram só alguns anos, mas foram bons tempos… Que beleza de lugar, com golfinho pulando, baleia namorando, aquela água azul, transparente, como nos calendários da Air France… E tinha peixe, ostra, siri, pitu, caranguejo e todo tipo de fruta em seu entorno, além de água doce e limpa à vontade. Disseram que a gente foi burro de ficar numa ilha que não tinha água doce, mas os índios nos deixavam pegá-la nos rios próximos.
Nós nos dávamos bem com os índios, e com as índias também, porque não os escravizávamos. Na verdade, sem a ajuda deles, teríamos passado fome.
Do paraíso para o Rio de Janeiro
Mas, a essa altura, você pode estar se perguntando: como um fantasma volta do paraíso assim, sem mais nem menos? Bom, me deixaram sair por acharem que eu já paguei os meus pecados – que não eram muitos – e agora estou em regime semiaberto.
E, para a minha primeira saída, eu escolhi o Rio de Janeiro, por causa da saudade e porque, francamente, vocês estão precisando de alguém que lhes diga o que vou dizer.
Fala sério… O que vocês acham que estão fazendo? Para começar, eu chego aqui e não acho mais a minha ilha. Isso mesmo, não é mais uma ilha. Vocês aterraram tanto a baía que engoliram minha ilha! Tudo bem, como almirante eu aprecio que ela seja hoje parte de uma escola naval. Mas o sumiço da minha ilha é um exemplo da loucura de vocês: desmatam tudo, ocupam tudo, sujam tudo e ainda chamam isso de progresso, crescimento, desenvolvimento.
O sumiço dos índios é outro sintoma grave. O que vocês fizeram com meus amigos índios e índias? Acho que eles foram embora para longe, pois gostam de tomar banho de rio ou mar duas vezes ao dia, e hoje só daria pra fazer isso no piscinão de Ramos!
Estão malucos? A baía inteira virou uma cloaca fedorenta e só dá pra tomar banho no piscinão? No meu tempo, tomava-se banho em qualquer lugar, todo mundo junto, pelado, e ninguém pegava pereba, só neném de vez em quando.
Por isso eu grito: quero minha ilha, meus índios e minhas índias de volta!
Mas aí me disseram: calma, você tem razão em parte; mas você tem que conhecer a Barra da Tijuca, acho que vai gostar.
Quando cheguei lá, que decepção. Vi que eu já conhecia aquela praia, havia estado lá de barco, não lembro se em 1556 ou 1557. Foi uma bela pescaria na lagoa que hoje é puro esgoto.
O problema foi voltar de ônibus para minha ilha querida: fiquei horas num engarrafamento infernal, e ainda tive que explicar o tempo todo que não, eu não estou divulgando mais um filme daqueles piratas do Caribe, e não, eu também não tenho um programa sobre comida na televisão a cabo, apesar do sotaque parecido. Demorei mais tempo para ir de ônibus da Barra ao Centro do que eu levava em 1555, de barco a vela – e pelo menos no meu barco a gente fazia exercício, tinha banheiro, biblioteca e serviço de bordo.
Fala sério… O que vocês acham que estão fazendo? As aldeias e cidades foram inventadas para facilitar a vida das pessoas, não para infernizá-la.
Por isso eu repito: quero minha ilha, meus índios e minhas índias de volta.
E eu, o fantasma de Nicolas Durand de Villegagnon, afirmo: puxarei o pé de vocês de noite se não se emendarem.
Fala sério!
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro