Que ninguém se engane: o personagem principal de O discurso do rei, um dos filmes favoritos a ganhar várias estatuetas do Oscar de 2011, não é o príncipe Albert Frederick Arthur George (interpretado por Colin Firth, candidato ao prêmio de melhor ator), que assume a contragosto o trono do império britânico e torna-se o rei George VI.
Muito menos o quase excêntrico terapeuta da fala Lionel Logue (interpretado por Geoffrey Rush, também sério candidato a levar a estatueta, na categoria de melhor ator coadjuvante), que tem a tarefa de ajudar o novo rei a superar o nervosismo e a gagueira durante seus discursos.
O grande personagem do filme é o rádio. Afinal, é só porque o príncipe precisa falar em público – e para todo o império britânico – que a necessidade de tratar sua gagueira é tão premente.
Em torno do rádio se passam as principais cenas do filme: da leitura do discurso – depois apropriadamente fotografado, como se ele tivesse sido feito no escritório de trabalho do rei – a sua transmissão e difusão para todo o império britânico.
Em seu primeiro discurso de guerra, por exemplo, proferido em 3 de setembro de 1939, dois dias depois de as tropas alemãs invadirem a Polônia e darem o pontapé inicial para a Segunda Guerra Mundial, George VI disse que queria falar a seus súditos como se estivesse entrando na casa deles.
Ouça abaixo a transmissão original do discurso
E era isso mesmo. Quem quer que falasse no rádio entrava na casa das pessoas, convivia com elas como se de fato as conhecesse. O rádio ocupava o espaço nobre das salas de estar, e o horário das notícias e dos programas transformava a vida das pessoas, pois ditava a própria organização do cotidiano familiar.
A era de ouro
Como bem disse o historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-), o rádio “trazia o mundo à sua sala”. Ninguém jantava ouvindo rádio ou conversava ouvindo rádio – e a música que se ouvia jamais era “de fundo”, como hoje em dia. Hoje ouvimos rádio enquanto fazemos alguma outra coisa: dirigimos, cozinhamos, trabalhamos. Mas, na chamada ‘era do rádio’, isso jamais acontecia.
De fato, o rádio foi o maior fenômeno de comunicação da primeira metade do século 20, e ele ainda continua ocupando lugar de destaque entre os meios de comunicação, embora quem nasceu depois do advento da internet possa duvidar disso. Pois é: a primeira tecnologia wireless (sem fios) não foi criada para os computadores, mas para a propagação de ondas eletromagnéticas, as ‘ondas do rádio’.
Aliás, assim como ocorreu com o avião, há quem advogue que o inventor do rádio foi um brasileiro. Um ano antes de o físico italiano Guglielmo Marconi (1874-1937) se tornar mundialmente conhecido como o inventor do primeiro transmissor de ondas eletromagnéticas, o padre brasileiro Roberto Landell de Moura (1861-1928) fez, em 1894, uma demonstração de transmissão de ruídos da avenida Paulista ao alto de Santana, em São Paulo.
Por conta dessa e de outras façanhas, Landell de Moura foi reconhecido em 1904 como o inventor do telégrafo sem fio, do telefone sem fio e do transmissor de ondas sonoras.
Seja como for, a primeira radiodifusão aconteceu mesmo em 1916, em Nova Iorque (Estados Unidos). Com a invenção do microfone, já nos anos 1920, estavam criadas as condições técnicas para que o rádio deixasse de ser um aparelho utilizado apenas para fins militares e ganhasse o mundo.
Para liberar as sobras dos aparelhos fabricados durante a Primeira Guerra Mundial, a companhia norte-americana Westinghouse Electric Co instalou uma grande antena em sua fábrica e começou a transmitir música para seus vizinhos. Daí a começar a vender os aparelhos de rádio encalhados, foi um pulo.
Surgia então o primeiro meio de comunicação digno do título ‘de massa’, responsável pela criação de mais de 300 emissoras nos Estados Unidos no espaço de pouco mais de um ano.
Transmissão radiofônica no Brasil
No Brasil, a primeira transmissão radiofônica oficial foi o discurso do presidente Epitácio Pessoa (1865-1942), para comemorar o centenário da independência do país, em 1922. O discurso foi proferido na Praia Vermelha, mas o transmissor foi instalado no alto do Corcovado, pela mesma Westinghouse Electric Co.
A década de 1930 viu surgir as primeiras grandes rádios brasileiras – como a Rádio Nacional, a Rádio Bandeirantes e a Rádio Globo –, e com elas os programas governamentais, como A Hora do Brasil (hoje Voz do Brasil). No programa, as notícias oficiais eram veiculadas e o presidente Getúlio Vargas (1882-1954) dirigia-se diretamente a cada um dos brasileiros, assim como fez o rei George VI e como já faziam, na mesma época, o presidente norte-americano Franklin Roosevelt (1881-1945) e o ditador alemão Adolf Hitler (1889-1945).
Seguindo essa mesma linha de apresentação, em 1941 foi lançado o Repórter Esso, primeiro e mais importante jornal brasileiro transmitido por rádio, que durou até 1968. O bordão “a Segunda Guerra acabou depois que o Repórter Esso noticiou” evidencia bem a dimensão da credibilidade e da importância que o programa tinha no Brasil.
Mas nenhum outro episódio foi tão representativo da importância alcançada pelo rádio como a transmissão da simulação de um ataque marciano aos Estados Unidos feita pelo cineasta norte-americano Orson Welles (1915-1985) em 1938. Era para ser apenas uma peça de audioteatro, mas a transmissão pela Rádio CBS do drama na véspera do dia das bruxas deu à peça ares de realidade.
Welles adaptou o livro A Guerra dos Mundos, lançado em 1898 pelo escritor britânico H.G. Wells (1866-1946), para a linguagem radiofônica, como se fosse uma cobertura jornalística verdadeira (ouça a versão original em inglês).
O resultado foi quase inacreditável: em pânico, muitas pessoas acreditaram que os marcianos tinham mesmo invadido os Estados Unidos. Orson Welles passou o resto da vida tendo que se defender das acusações de ter deliberadamente espalhado terror pelo rádio.
Quem dera o rei George VI também pudesse ter sido acusado de pregar uma peça na população por ter anunciado, em 1939, que “dias terríveis” estavam a caminho.
Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro