O vaivém da fusão nuclear

De tempos em tempos, a imprensa noticia algo sobre a fusão nuclear. Nos anos 1950, o mundo ficou abismado com a bomba de hidrogênio produzida nos Estados Unidos. Foi o primeiro uso prático da fusão nuclear, um fenômeno cuja explicação detalhada e cuja associação à produção de energia nas estrelas valeram ao físico Hans Bethe (1906-2005) o Prêmio Nobel de Física de 1967.

No final dos anos 1960, a grande notícia foi o desenvolvimento do tokamak, acrônimo da expressão russa toroidal’naya kamera v magnitnykh katushkakh, que significa câmera toroidal com bobinas magnéticas. Esse equipamento foi inventado pelos físicos russos Andrei Sakharov (1921-1989) e Igor Tamm (1895-1971) para a obtenção de fusão termonuclear e logo foi transformado em protótipo ideal para o uso pacífico desse processo.

 

Rapidamente a “tokamakmania” espalhou-se pelo mundo. Tokamaks foram instalados em todos os países industrializados. No Brasil, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Universidade de São Paulo (USP) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) seguiram a moda. Mas as pesquisas não tiveram muito impacto nos meios de comunicação de massa.

Em 1989, Martin Fleischmann, professor de química da Universidade de Southampton (Inglaterra), e Stanley Pons, professor de química da Universidade de Utah (EUA), publicaram um artigo que gerou enorme controvérsia na comunidade científica internacional e que relatava a descoberta de um fenômeno, logo denominado fusão a frio. O título do trabalho era: Fusão nuclear de dêuteron eletroquimicamente induzida. De vez em quando, aparece um novo artigo sobre o tema, mas poucos cientistas levam a sério..

A fusão nuclear voltou a ser assunto para o grande público em 1992, quando a Comunidade Europeia, a Coreia do Sul, a China, os Estados Unidos, o Japão e a Rússia decidiram construir o Reator Termonuclear Experimental Internacional (Iter, na sigla inglesa). Na verdade, esse projeto teve origem em uma colaboração entre os Estados Unidos e a União Soviética iniciada em 1985. Em 2006, a Índia também passou a fazer parte do grupo.

O Iter é considerado o último passo em direção ao teste final de exequibilidade da fusão nuclear em escala industrial, conhecido como Demo. Depois desse teste, deverão surgir instalações industriais que permitirão a realização desse processo em larga escala.

Entre os países em desenvolvimento considerados grandes potências econômicas (Brasil, Rússia, Índia e China), apenas o Brasil não participa desse empreendimento internacional. Mas, segundo notícia recentemente publicada no Jornal da Ciência, o ministro da Ciência e Tecnologia, Sergio Rezende, está em negociação para celebrar um acordo com a Comunidade Europeia da Energia Atômica (Euratom), por meio do qual cientistas brasileiros poderão trabalhar em laboratórios europeus nessa área.

No início deste ano, o tema da fusão nuclear veio novamente à baila porque todo o projeto Iter está sendo redimensionado, com objetivos menos ambiciosos e cronograma mais dilatado. Embora o princípio da fusão nuclear seja estonteantemente simples, sua utilização em artefatos industriais é muito mais complexa do que se imaginava.

A origem da energia do universo
Com exceção da energia escura, cuja origem ainda é um mistério, virtualmente toda a energia do universo surge em processos de fusão nuclear. No Sol e em outras estrelas, isso ocorre por meio de uma reação em cadeia que se inicia com a fusão de dois prótons, que gera um dêuteron (núcleo do deutério, um isótopo do hidrogênio), um elétron e um neutrino, responsável pela liberação de energia. O dêuteron contém um próton e um nêutron. Portanto, além de liberar energia (por meio do neutrino), essa reação origina o nêutron e o elétron.

Depois, o dêuteron combina-se com outro próton para formar o hélio-3 (composto por dois prótons e um nêutron), que, por sua vez, se junta a outro hélio-3 para formar o hélio-4 (composto por dois prótons e dois nêutrons) e dois prótons. As combinações continuam a ocorrer sucessivamente, até que se formem todos os elementos químicos.

A animação mostra a fusão nuclear do deutério (à esquerda) com o trítio (à direita). O processo libera energia de 3,5 MeV associada ao núcleo de hélio e emite um nêutron com energia de 14,1 MeV. Imagem: Wikimedia Commons.

Algumas dessas reações são corriqueiramente reproduzidas em laboratório. Entre todas as possibilidades, a que apresenta maior potencial de aproveitamento energético é a que envolve o dêuteron (D) e o trítio (T), que contém um próton e dois nêutrons. O problema é dominar essa tecnologia de modo que o balanço energético seja positivo em quantidade apreciável. Isto é, a energia gasta para produzir a reação deve ser menor do que a energia liberada.

Em todas essas reações, a energia liberada pode ser calculada a partir da famosa equação de Einstein: E=mc 2 . Por exemplo: a massa do dêuteron é menor do que a soma das massas do próton e do nêutron. Essa massa que “falta” é transformada em energia. Na reação entre o dêuteron e o trítio, a energia liberada é de aproximadamente 17,6 MeV (milhões de elétron-volts). O elétron-volt é a energia adquirida por um elétron quando acelerado por uma diferença de potencial de 1 volt.

Fusão nuclear em laboratório
Para produzir reações de fusão nuclear, a providência inicial é fazer com que os núcleos fiquem o mais próximo possível uns dos outros e submetê-los a uma alta temperatura. No interior das estrelas, a proximidade é obtida por causa das altas pressões resultantes dos enormes campos gravitacionais ali existentes.

Nos laboratórios terrestres, existem algumas alternativas para manter os núcleos próximos, em temperaturas muito superiores àquela existente no interior do Sol. Entre essas alternativas destacam-se o confinamento magnético e o confinamento inercial, sendo a primeira a que tem despertado o maior interesse da comunidade científica. Não discutiremos aqui o confinamento inercial, diremos apenas que ele é obtido por meio de feixes de laser superpotentes.

Representação artística de um tokamak (imagem: MIT).

O confinamento magnético é hoje sinônimo de tokamak. Esse equipamento consiste em um toroide metálico, em volta do qual várias bobinas condutoras são dispostas. Nos equipamentos modernos, essas bobinas são confeccionadas com materiais supercondutores, para produzir campos magnéticos mais intensos com menor consumo de energia.

Quando correntes elétricas circulam nessas bobinas, campos magnéticos são produzidos na direção do toroide. Por isso, são conhecidos como campos toroidais. No interior do toroide, uma mistura de deutério e trítio é aquecida até que se transforme em plasma, formado por íons positivos e elétrons. Se a temperatura for suficientemente alta, maior do que 50 milhões de graus centígrados, é possível que o plasma formado contenha apenas dêuterons, trítons (núcleos de trítio) e elétrons.

Um campo elétrico toroidal, produzido com um transformador, acelera íons e elétrons em sentidos contrários. Se existisse apenas esse campo elétrico, íons e elétrons terminariam por entrar em contato com as paredes do toroide, resfriando o plasma e se afastando da condição que permite a fusão nuclear.

Por isso, uma complexa configuração de campos magnéticos, sendo o campo toroidal já mencionado o mais importante, faz com que íons e elétrons sigam trajetórias helicoidais em torno do eixo do toroide. Daí vem a expressão confinamento magnético. O plasma fica confinado em uma pequena região em torno do eixo do toroide. Essas condições tornam possível a fusão nuclear.

Desafio internacional
É simples assim. Mas atravessar a porta que separa um pequeno experimento de uma instalação industrial é um desafio extraordinário. Depois que muitos laboratórios aceitaram o desafio, perceberam que só um empreendimento internacional seria capaz de suplantá-lo. Foi assim que surgiu o Iter, com orçamento superior a 20 bilhões de Reais para os primeiros 30 anos. Depois de uma acirrada disputa com a Espanha e o Japão, a França acabou convencendo os membros do consórcio de que suas instalações em Cadarache eram as mais apropriadas para abrigar o reator.

As frequentes alterações de cronograma e previsões orçamentárias dão uma boa ideia das dificuldades técnicas do empreendimento. Quando o local do reator foi decidido, em 2006, a previsão era de que ele entrasse em operação em 2020. Mas, dois anos depois, essa previsão passou para 2025. O orçamento foi reavaliado e aumentado em 30%, mas há quem esteja pensando que ele será duplicado. A necessidade de novas configurações de campos magnéticos e de proteção contra abalos sísmicos são alguns dos fatores responsáveis por esse acréscimo no orçamento.

Por causa de tudo isso, o reator será construído com uma configuração esquelética, apenas com equipamentos para a realização dos experimentos básicos. Na reunião do conselho do Iter, realizada nos dias 17 e 18 deste mês no Japão, ficou decidido que os primeiros experimentos com plasma deverão ocorrer em 2018 e que a primeira operação com deutério e trítio deverá ser realizada em 2026.

Delegados do conselho do Iter reunidos em junho de 2009 no Japão (foto: Iter).

Até chegar ao estágio industrial, dificuldades técnicas que não podem ser investigadas pelo Iter terão que ser superadas. Um exemplo é o fato de a reação entre deutério e trítio produzir nêutrons com energia de cerca de 14 milhões de elétron-volts. Nos curtos ciclos de operação do Iter isso não é um problema, mas, em regime de uso contínuo de uma planta industrial, a interação desses nêutrons com a parede do toroide poderá ter consequências catastróficas.

A grande dificuldade é que ainda não há sequer instalações experimentais para testar materiais desenvolvidos para resistir a esse fluxo de nêutrons. Assim, paralelamente aos experimentos com o Iter, será montada no Japão uma instalação com esse objetivo, denominada instalação internacional para irradiação de materiais para fusão (IFMIF, na sigla em inglês).

Se todas as dificuldades tecnológicas, sobretudo aquelas relacionadas com o aproveitamento e a distribuição da energia, forem superadas no devido tempo, espera-se que a construção do Demo (o último experimento rumo à obtenção da fusão nuclear em escala industrial) tenha início em 2025 e que em 2035 ele entre em operação. Considerando as estimativas mais otimistas, as instalações industriais capazes de realizar a fusão nuclear só devem entrar em operação por volta de 2050. É esperar para ver…

Carlos Alberto dos Santos
Colunista da CH On-line
Professor aposentado pelo Instituto de Física
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
29/06/2009