Você está no carro, em pleno engarrafamento, naquele calorão, e daria seu reino por um gole de água fresquinha. Só que os vendedores ambulantes ainda não chegaram, e tudo o que você encontra no porta-luvas é uma garrafinha com um resto de água… morna. Mas ao lado está também um pacotinho esquecido de balas Halls compradas em algum sinal de trânsito. Santa memória, que lhe traz imediatamente à cabeça uma brincadeira de infância: o truque da bala que deixa a água gelada!
Quem ainda não conhece o truque pode testá-lo gastando apenas alguns centavos. Basta chupar uma bala de menta, daquelas bem refrescantes, e depois beber um gole de água do filtro, nem fria, nem quente. Mágica: a água fica gelada!
Esse truque intriga os cientistas há tempos. Uns 50 anos atrás, dois pesquisadores mostraram que o mentol potencializa as respostas de fibras nervosas sensoriais do rosto ao frio, aumentando sua sensibilidade a temperaturas menos frias. Como? “Irritando os nervos” era a resposta mais provável.
Essa ’irritação’ de alguma forma deve acabar por facilitar a ativação das fibras nervosas que respondem ao frio. Em última análise, ’ativar’ uma fibra nervosa significa tornar a sua carga elétrica interna mais positiva. O próprio frio deve modificar a carga elétrica das fibras — mas como?
Não deve ser por um mecanismo trivial que, pela temperatura, modifique as cargas elétricas de todas as células, porque apenas algumas fibras nervosas são eletricamente ativadas pelo frio. Alguma molécula deve existir especificamente na superfície de algumas fibras nervosas que as torne sensíveis a baixas temperaturas e que funcione como uma espécie de termômetro.
Dois novos estudos, seguindo caminhos diferentes, encontraram e identificaram a molécula que torna certas fibras nervosas sensíveis ao frio — e, de quebra, explicaram também o velho truque da bala de menta. Não é que a menta ’irrite’ os nervos de forma não específica (o que até acontece, mas em concentrações muito mais elevadas). O truque da menta é ’ligar’ a mesmíssima proteína na superfície das fibras que funciona como indicador de frio. Ou seja: mentol e frio passam a ser sinônimos para as fibras nervosas que contêm essa proteína em sua superfície. A descoberta, feita por um grupo norte-americano, foi publicada em 2002 na revista Nature.
Ao invés de agir sozinho sobre as células, no entanto, o mentol parece exacerbar a resposta dos neurônios à baixa temperatura. Se normalmente é preciso passar de 37o C a 27o C para ’ligar’ esses neurônios pelo frio, na presença de mentol temperaturas de 30o C graus para baixo já provocam corrente elétricas para dentro dos neurônios. A conseqüência, de importância central para o truque da bala de menta, é que, na presença de mentol, uma queda de temperatura dos 37o C habituais da boca para mornos 26o C da água guardada no seu porta-luvas pode provocar uma corrente elétrica para dentro dos neurônios que normalmente só é produzida a 16o C. Resultado: o cérebro, que não tem outra leitura independente da temperatura, acaba achando que a água está 10 graus mais fria…
E como, exatamente, os neurônios ’medem’ a queda de temperatura? A chave parece ser uma proteína na superfície da célula que muda de formato em função da temperatura: se houver frio suficiente, ela se transforma em um verdadeiro canal que permite a passagem de corrente elétrica para dentro da célula.
Ao que tudo indica, trata-se de uma proteína que se insere na superfície da célula, onde fica atravessada como um alfinete encravado num balão, e forma um canal que somente se abre a temperaturas abaixo de 27o C — ou abaixo de 30oC, se ao mesmo tempo ela puder interagir com o mentol. Como o canal aberto deixa passar somente cargas positivas, o resultado é que sua abertura torna a carga elétrica no interior da célula mais positiva. Assim, o frio — ou o mentol — ativa diretamente a fibra nervosa.
Embora seja o mais conhecido agente ’refrescante’, o mentol não é a única substância a exacerbar a resposta desses neurônios ao frio, nem a mais potente. À temperatura ambiente (que, para um estudo americano, significa 22o C), o eucaliptol, outro componente comum nas balas refrescantes, também produz correntes elétricas nessas células, embora somente em concentrações bem mais elevadas; e o super-refrescante icilin (algo como ’gelina’, em português) produz correntes dez vezes maiores a uma concentração dez vezes menor que o mentol.
Quem poderia ficar contente com esse poder refrescante do mentol de fazer as fibras nervosas responderem a temperaturas apenas amenas como se estivessem no fresquinho são os ambulantes que aparecem providencialmente na hora do engarrafamento para vender biscoitos de polvilho e água gelada, carregada em pesadíssimos isopores cheios de gelo. Já pensou que alívio para a coluna deles se bastasse pingar umas gotinhas de mentol para deixar a água bem ’geladinha’? Uma pena essa história do mentol não funcionar acima de 30 graus…
Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia