Obra incendiária

Uma das coisas que mais vêm me intrigando nesta temporada aqui nos Estados Unidos é como pode existir, ao mesmo tempo, tanto consenso sobre a importância de haver um sistema público de educação e tanto dissenso sobre a importância de haver um sistema público de saúde.

Como pode existir tanto consenso sobre a importância de haver um sistema público de educação e tanto dissenso sobre a importância de haver um sistema público de saúde?

Os norte-americanos discutem a educação pública à exaustão. Enquanto os especialistas publicam livros, dão entrevistas e escrevem para os jornais, os pais de estudantes arrecadam fundos para as atividades extracurriculares, cuidam da horta da escola, ajudam na aula de matemática, organizam comitês para discutir como conseguir mais voluntários – nunca vi um voluntarismo tão impositivo – e se reúnem na porta das escolas para falar delas. Bem ou mal.

Tanto faz, na verdade, se falam bem ou mal. O importante é que a escola continua sendo a experiência central na construção da vida pública do país. Poucas nações levam tão a sério a máxima de que a escola forma o cidadão. Daí o porquê de tanto debate. Ninguém é chamado de socialista ou fascista por discutir a qualidade da escola pública.

Já Ron Paul, então pré-candidato à presidência da República, acusou, em novembro passado, o plano de reforma da saúde pública apresentado por Barak Obama, o Obamacare, de beirar o fascismo. A menor das críticas tacha o programa de radical. E olha que, depois de tantas emendas, hoje ele se limita a obrigar todos os norte-americanos a terem plano de saúde.

Hospital de escravos
O debate sobre o sistema de saúde do país não é tão recente nos Estados Unidos como pode parecer: logo após a Guerra Civil, teriam sido construídos 40 hospitais como o da foto para tratar mais de um milhão de ex-escravos, que passaram a demandar apoio do governo. (foto: Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos)

Justamente porque a escola pública tem papel central na vida da população dos Estados Unidos, é que causa tanta estranheza o fato de a saúde nunca ter tido destino semelhante. E, a julgar pelas reações ao Obamacare, não terá no futuro próximo.

O que a maioria dos oponentes ao programa de saúde não sabe é que essa discussão, aqui nos Estados Unidos, não é nova. De fato, ela começou logo após o fim da Guerra Civil Americana, que, não por acaso, matou mais gente de doença do que em batalha. E os mais afetados foram os afrodescendentes, que só então haviam deixado de ser escravos.
 

Departamento de libertos

A questão é tratada por Jim Downs no livro Sick from Freedom: African-American Illness and Suffering during the Civil War and Reconstruction (em tradução livre, Doentes de liberdade: doenças e sofrimentos de afro-americanos durante a Guerra Civil e a Reconstrução, título talvez um pouco infeliz, pois dá a entender que a liberdade trouxe a doença, exatamente o oposto do que o autor quer dizer). Na obra, que acaba de ser lançada pela Oxford University Press, Downs estima que, do fim da guerra, em 1865, a 1869, cerca de um milhão de libertos contraiu varíola, febre amarela ou disenteria.

Capa do livro

Ao abandonar as fazendas do Sul para se juntar aos exércitos do Norte e ajudar a combater a escravidão, os últimos escravos dos Estados Unidos também deixaram para trás os sistemas de tratamento médico existentes nas grandes plantations, onde não eram raros os hospitais de escravos. Com o fim da guerra, o número de doentes era tal que exauriu também as redes de apoio criadas por organizações beneficentes e de caridade.

O resultado foi que, sem ter a quem recorrer, os libertos começaram a demandar apoio do governo para obter comida, roupa, remédios e, como a taxa de mortalidade era alta, cemitérios. Foi assim que o governo criou a divisão médica do Freedmen’s Bureau (Departamento de Libertos, a instituição governamental dedicada aos assuntos dos libertos).

Em cinco anos, ainda de acordo com o estudo de Downs, foram construídos 40 hospitais, empregados mais de 120 médicos e tratados mais de um milhão de ex-escravos. Foi a primeira vez que o governo federal norte-americano se dedicou a cuidar diretamente de cidadãos que nunca estiveram a serviço das forças armadas.

Saber que a primeira iniciativa do governo federal norte-americano na área da saúde pública foi cuidar dos libertos também deve incomodar muita gente

Não é tão surpreendente que se saiba pouquíssimo, hoje, dessa história. Logo após a guerra, a saúde dos libertos – ou melhor, a falta dela – não era o assunto preferido dos abolicionistas, uma vez que podia dar margem ao argumento, facilmente encampado pelos escravocratas, de que eles tinham vida melhor e mais saudável quando eram escravos. 

Atualmente, saber que a primeira iniciativa do governo federal norte-americano na área da saúde pública foi cuidar dos libertos também deve incomodar muita gente. Antes de mais nada, por saber que os primeiros a demandar a ação do governo federal foram justamente os recém-libertos, não por acaso os que mais precisavam de tratamento médico. Mas, principalmente, porque demonstra que a intervenção governamental no assunto – se é que se pode chamar assim o Obamacare – não é algo novo. E muito menos radical.

Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Pós-doutoramento na Universidade de Michigan (bolsista da Capes)