Quem acredita que a matéria-prima da ciência são os fatos está redondamente enganado. São as idéias! Os grandes cientistas são fonte abundante de grandes idéias: suas hipóteses freqüentemente precedem os fatos que as comprovam.
Exemplo recente dessa afirmação foi fornecido pelo eminente neurocientista americano Fred Gage, notabilizado pelo seu trabalho com transplantes de neurônios, células-tronco no sistema nervoso e a geração de novos neurônios que se demonstrou ocorrer no cérebro de adultos. Gage e seus colaboradores do Instituto Salk de Estudos Biológicos, nos Estados Unidos, publicaram há poucos meses na revista inglesa Nature Neuroscience um trabalho em que propõem um mecanismo biológico para a codificação do tempo na memória.
Associando memórias no tempo
A memória é capaz de associações temporais inusitadas. Figura adaptada de Aimone et al (2006) Nature Neuroscience , vol. 9, pp.723-727.
Poucas de nossas memórias são datadas – geralmente, as que ocorreram em uma data de aniversário (o nascimento de um filho), em um feriado (um episódio ocorrido no Natal) ou em circunstâncias muito fortes que gravaram a data com precisão (a queda das torres gêmeas de Nova York em 11 de setembro). As demais ficam associadas a outras ocorridas na mesma época. Quando foi mesmo meu casamento? Ah, foi no mesmo mês em que morreu Cássia Eller…
Ocorre que a consolidação das memórias, isto é, a fixação que as torna duradouras, depende de uma região do cérebro chamada hipocampo – um tipo muito antigo de córtex cerebral que permanece em todos os mamíferos, inclusive no homem. O hipocampo tem diferentes regiões, e uma delas se chama giro denteado .
Ao contrário do que geralmente pensam as pessoas, demonstrou-se há algum tempo que o giro denteado é uma das poucas regiões do cérebro adulto que apresenta neurogênese, ou seja, possui uma população de células imaturas que proliferam continuamente e se transformam em novos neurônios que acabam por integrar-se aos circuitos funcionais do hipocampo. Trata-se de um processo contínuo, que é estimulado pelo exercício físico e mental e diminui com a idade, com o alcoolismo e com as doenças neurodegenerativas.
Por que será que justamente essa região apresenta neurogênese no adulto? Não há de ser para repor perdas, porque há perdas também em praticamente todas as regiões do cérebro, que não apresentam neurogênese ou a têm em ínfimas proporções. Gage e seus associados – James Aimone e Janet Wiles – propõem a ousada hipótese de que os novos neurônios nascidos no giro denteado das pessoas têm a função de associar memórias no tempo.
Novos neurônios e memórias associadas
Quando um fato novo ocorre em nossa vida, ativa alguns poucos neurônios do giro denteado, formando o que os neuroinformatas chamam de código esparso . Esse código serve apenas para sinalizar que ocorreu um fato específico, e como esses neurônios se comunicam com outras regiões do hipocampo e estas com outras regiões cerebrais, o código esparso originado no giro denteado sinalizará a essas regiões a lembrança exata do fato em questão. Já o arquivo da memória propriamente dito é armazenado fora do hipocampo, nas regiões que também perceberam o fato ocorrido através dos sistemas sensoriais.
O código esparso passa a representar um sinal daquele fato, e sempre que é ativado nos faz recordá-lo. Se algum tempo depois ocorrer um novo fato, outro código esparso será gerado por outro conjunto de neurônios do giro denteado, e o processo se repetirá. Mas se fosse só isso, não poderíamos conectar os fatos no tempo, pois cada um deles seria representado por uma diferente população de neurônios… Como então explicar as memórias associadas no tempo?
É aí que entrariam os novos neurônios do giro denteado, segundo a engenhosa hipótese do grupo de Gage. Os novos neurônios em poucos dias emitem prolongamentos e tornam-se funcionais, capazes de gerar e conduzir impulsos nervosos, como todo neurônio de boa estirpe. Só que – talvez por serem jovens – são mais excitáveis, mais ativos e mais plásticos.
Quando ocorre o tal fato novo mencionado acima, além do grupinho de neurônios maduros, seriam ativados também alguns neurônios novos, que gerariam um código esparso paralelo. Parte desses neurônios novos hiper-excitáveis seriam novamente ativados quando ocorre o segundo fato, algum tempo depois. Assim, o primeiro fato ficaria codificado por um grupo de neurônios maduros do giro denteado e o segundo por outro grupo, mas ambos ficariam também codificados, em paralelo, pelo grupo de neurônios jovens também ativados.
As memórias teriam, assim, um elo temporal entre si. A hipótese não está ainda comprovada, e certamente motivará uma próxima onda de experimentos para testá-la. O importante é que os novos neurônios que geramos continuamente no nosso giro denteado teriam agora uma razão reconhecida de existir: conectar no tempo as peças que compõem a nossa memória – não fosse assim, ela seria um quebra-cabeças indecifrável. SUGESTÕES PARA LEITURA
E. Gould e colaboradores (1999) Learning enhances adult neurogenesis in the hippocampal formation. Nature Neuroscience , vol. 2, pp. 260-265.
S.A. Becker (2005) A computational principle for hippocampal learning and neurogenesis. Hippocampus , vol. 15, pp. 722-738.
G.L. Ming e H. Song (2005) Adult neurogenesis in the mammalian central nervous system. Annual Review of Neuroscience , vol. 28, pp. 223-250.
J.B. Aimone e colaboradores (2006) Potential role for adult neurogenesis in the encoding of time in new memories. Nature Neuroscience vol. 9, pp. 723-727.
Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
28/07/2006