Já é uma constatação antiga: o cérebro é formado por módulos de neurônios processadores de informação, de modo similar aos circuitos integrados embutidos no computador que me permite escrever este texto.
A origem dessa ideia vem da indagação que todos fazemos: de que modo o cérebro consegue lidar com a enormidade de informações que recebe a cada momento? Se você parar para pensar, agora mesmo que você lê esta coluna, seu cérebro reconhece o texto e as figuras que chegam a ele por meio dos olhos, interpreta o seu significado, guarda uma parte na memória e concatena as ideias para permitir que você compreenda o sentido de tudo, tirando suas conclusões.
Ao mesmo tempo, ele comanda sua mão no controle do mouse do computador, mantém a posição do seu corpo e de sua cabeça à frente do monitor e move seus olhos para permitir a leitura.
E não é tudo: discretamente, o cérebro comanda seu ritmo cardíaco e respiratório, seus movimentos viscerais, o suor que produz se estiver fazendo calor e muitas outras funções.
E, se for o caso, ainda ouve no fundo uma música no seu MP3 e desvia a atenção para a TV quando uma edição extraordinária do telejornal relata alguma notícia de última hora.
Uma megaoperação de processamento paralelo de informações, semelhante, mas de maior envergadura, à que consegue fazer até o momento o mais sofisticado dos computadores construídos pelo homem.
Colunas corticais
Talvez o primeiro propositor da ideia de módulos cerebrais tenha sido o neurofisiologista norte-americano Vernon Mountcastle, nos anos 1950. Durante experimentos de registro da atividade elétrica do córtex do gato, ele percebeu que os neurônios situados em uma mesma coluna perpendicular à superfície tinham funções semelhantes.
Na mesma época, o morfologista húngaro Janos Szenthagothai (1912-1994) refinou a ideia, propondo alguns dos circuitos entre neurônios da mesma coluna, bem como suas ligações com outras regiões cerebrais.
Hoje se sabe que a coluna contém uma população de neurônios excitatórios que empregam o neurotransmissor glutamato, um inocente sal com a capacidade de atravessar o microscópico espaço que separa os neurônios de um circuito e excitá-los, ou seja, provocar a ocorrência de impulsos nervosos neles. São os neurônios piramidais do córtex.
Com eles se articula uma segunda população neuronal de propriedades opostas – os neurônios inibitórios – que empregam um neurotransmissor diferente, com nome pomposo: ácido gama-aminobutírico, conhecido pelo apelido Gaba. Neste caso, a ação do Gaba é bloquear – parcial ou completamente – a produção de impulsos nervosos nos neurônios adjacentes.
A coluna funciona pela oscilação do balanço entre excitação e inibição, que possibilita o fino controle das informações recebidas por cada neurônio e passadas adiante aos neurônios seguintes do circuito.
A coluna cortical passou a ser considerada o protótipo do processador integrado do cérebro dos mamíferos, a tal ponto que gerou projetos de investigação de suas características por meio do que se chama engenharia reversa, ou seja, a decomposição de máquinas em suas partes, para decifrar o funcionamento de cada uma delas e do conjunto.
Uma dessas iniciativas – o Projeto Cérebro Azul, da Escola Politécnica Federal de Lausanne, na Suíça – tem como objetivo desvendar o funcionamento das colunas corticais por meio de simulações matemáticas de cada um de todos os seus elementos. O projeto já foi capaz de reconstruir digitalmente em 3D 10 mil neurônios reais de 200 diferentes subtipos dos dois tipos principais, e realiza atualmente simulações funcionais do processamento que esse enorme conjunto de células consegue realizar.
Como se constrói uma coluna cortical?
A construção das colunas durante o desenvolvimento embrionário e ao longo da evolução das espécies, bem como sua composição e funcionamento, tornaram-se temas de grandes debates e controvérsias entre os neurocientistas.
Seriam essas colunas módulos homogêneos que realizariam as mesmas operações computacionais em todas as regiões corticais? Ou seriam heterogêneos os circuitos no interior das colunas, cada um deles especializado na função característica da sua região? De que modo o desenvolvimento embrionário permitiria construir esse computador modular? Qual o papel dos genes e do ambiente nesse processo? De que modo os mecanismos do desenvolvimento repercutiriam na evolução do córtex cerebral?
Um grupo de pesquisadores da Universidade de Oxford, na Inglaterra, liderado pelo eminente neuroanatomista Tom Powell, divulgou em 1980 uma análise quantitativa em diversas espécies animais e diferentes áreas corticais.
A equipe chegou à conclusão de que o córtex é dotado de exatos 147 mil neurônios abaixo de cada milímetro quadrado de superfície cortical. A coluna, portanto, seria um módulo homogêneo, conservadíssimo ao longo da evolução.
Nosso grupo do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em colaboração com o Departamento de Psicologia da Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos, reexaminou essa ideia utilizando uma nova técnica quantitativa inventada por Suzana Herculano-Houzel, e chegou a conclusões opostas.
Os resultados de nossos estudos indicam que não, as colunas corticais não parecem ser homogêneas, pois encontramos uma variação de 300% entre os diversos animais estudados. Parecia simples demais: a natureza é mais complexa do que parece.
Desvendando o circuito integrado cortical
Recentemente, uma bela contribuição à elucidação da natureza das colunas corticais foi produzida por dois neurocientistas brasileiros, Marcos Costa, do Instituto Internacional de Neurociência de Natal (IINN), e Cecília Hedin-Pereira, do Instituto de Biofísica da UFRJ, em colaboração com um grupo alemão da Universidade Ludwig Maximilian, em Munique.
Eles realizaram experimentos em embriões de camundongos, infectando as células precursoras de neurônios piramidais com um vírus que se replica junto com o DNA dessas células a cada divisão e, além disso, é capaz de produzir uma proteína fluorescente verde identificadora de toda a linhagem da célula infectada. O resultado permitiu concluir que cada célula precursora gera um clone colunar de células-filhas adjacentes.
Costa e Hedin-Pereira analisaram vários trabalhos publicados nessa área, constatando diversas evidências de que os clones produzidos pelos precursores embrionários não apenas se organizam espacialmente em colunas. Os neurônios irmãos estabelecem circuitos internos funcionais que comunicam especificamente uns com os outros.
A hipótese dos autores é instigante: haveria semelhanças na expressão gênica de cada precursor neuronal, capazes de produzir neurônios com propriedades eletroquímicas semelhantes e alta conectividade recíproca.
A semelhança molecular entre os neurônios irmãos permitiria que eles se posicionassem próximos, no córtex adulto, se reconhecessem e se conectassem funcionalmente. Estaria assim formada uma coluna processadora: o circuito integrado do computador cerebral.
A analogia do cérebro com os computadores nasce e renasce a cada momento, não só porque o cérebro realiza de fato operações lógicas semelhantes às dos computadores, mas também porque os engenheiros cada vez mais se inspiram no cérebro para conceber os novos computadores que inventam.
É um círculo virtuoso: o cérebro imita a si próprio para criar artefatos tecnológicos. O horizonte desse processo é infinito por sua própria natureza.
Roberto Lent
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
S. Herculano-Houzel e colaboradores (2008) The basic non-uniformity of the cerebral cortex. Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA, vol. 105: pp. 12593-12598.
P. Rakic (2008) Confusing cortical columns. Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA, vol. 105: pp. 12099-12100.
M. Costa e colaboradores (2009) Late origin of glia-restricted progenitors in the developing mouse cerebral cortex. Cerebral Cortex, vol. 19 (supl. 1), pp. i135-i143.
M. Costa e C. Hedin-Pereira (2010) Does cell lineage in the developing cerebral cortex contribute to its columnar organization? Frontiers in Neuroanatomy (publ. eletrônica em 28/6/2010), doi: 10.3389/fnana.2010.00026.