O cientista inglês Francis Galton (1822-1911), que fez notáveis contribuições para a genética, a estatística, a biometria e outras áreas do conhecimento.
Francis Galton (1822-1911) foi um brilhante polímata inglês do período vitoriano. Ele fez notáveis contribuições para a genética, a estatística, a biometria e outras áreas do conhecimento. Galton era obcecado por números. Seu lema era: “Se puder medir, meça!”
Um exemplo do seu entusiasmo pela quantificação (e também da sua personalidade iconoclástica) foi um artigo, de 1872, com o título Estudos estatísticos sobre a eficácia das orações. Como em todas as escolas e repartições públicas da Europa havia diariamente preces para a saúde dos soberanos, Galton propôs verificar se reis e rainhas realmente viviam mais do que seus súditos e coletou dados da média de idade atingida por homens de várias ocupações. Ele constatou que os soberanos eram os que viviam menos entre todas as classes profissionais estudadas, e concluiu, assim, que as orações não tinham eficácia.
O cientista interessou-se profundamente pelos estudos biométricos de Alphonse Bertillon (1853-1914) na França. Entre outras medidas, Bertillon havia sido o pioneiro da técnica de datiloscopia, ou seja, a caracterização e medida das impressões digitais humanas. Galton, então, classificou os tipos básicos de impressões digitais e foi instrumental na demonstração de que elas eram altamente individualizantes e permanentes, estabelecendo, assim, as bases para a utilização das mesmas em criminalística.
Galton era neto do eminente evolucionista Erasmo Darwin e, conseqüentemente, primo de Charles Darwin. Talvez inspirado pela sua própria família, ele publicou, em 1869, um livro intitulado Gênio Hereditário. Na obra, ele demonstra, pela primeira vez, preocupação em tentar dissecar os componentes genético e ambiental da variação humana no campo das habilidades intelectuais. Enveredando por essa linha de raciocínio, o cientista propôs que famílias com comprovado mérito intelectual deveriam ser encorajadas a ter muitos filhos e, em 1883, inventou para essa prática o termo “eugenia”, de infeliz futuro.
A variação de estatura humana apresenta uma distribuição em forma de sino, chamada de curva normal ou gaussiana.
Mas a contribuição de Galton que eu queria especialmente focalizar na coluna deste mês é a sua pesquisa sobre um dos traços humanos mais facilmente mensuráveis: a estatura. Essa é uma característica de variação contínua. Se quantificarmos a freqüência de determinadas faixas de medidas de altura, veremos uma curva em forma de sino (tecnicamente denominada curva gaussiana ou distribuição normal) em torno de uma média (ver figura).
Galton já havia estudado a genética quantitativa do tamanho de sementes de ervilha e aplicou a mesma metodologia para estudar os aspectos hereditários da estatura humana. Uma idéia particularmente brilhante foi comparar a altura dos filhos com a média da altura dos pais, observando que os dados podiam ser sumarizados em um gráfico (ver figura).
Com a ajuda de amigos matemáticos, Galton desenvolveu nesse estudo a “análise de regressão”, uma das técnicas fundamentais da estatística. Mais tarde, Galton também esteve envolvido no desenvolvimento de outra ferramenta estatística importantíssima baseada na co-variação de duas medidas, a chamada “correlação”.
Gráfico publicado por Francis Galton em 1886 mostrando a relação entre a altura dos filhos e a média da altura dos pais. As análises feitas por ele foram precursoras das técnicas estatísticas de regressão e correlação.
No início do século 20, muitos estudos, inclusive os do médico inglês Archibald Garrod (1857-1936), já mencionados em uma coluna anterior, demonstraram que os princípios mendelianos aplicavam-se aos seres humanos tão bem quanto às ervilhas. Mas as variações que Mendel havia estudado em vegetais eram caracteristicamente qualitativas e quânticas (por exemplo, ervilhas lisas ou rugosas, sem estágios intermediários). Isso contrastava com os caracteres contínuos estudados pela escola biométrica galtoniana.
Criou-se, assim, um conflito paradigmático que motivou calorosos debates entre os ”mendelistas” e os “biometristas” nas décadas de 1910 e 1920. A questão só foi resolvida – de maneira brilhante – pelo grande geneticista inglês Ronald Fisher (1890-1962) em 1918, com a publicação de um artigo no qual ele propôs a existência de caracteres hereditários que dependem de muitos genes, a herança poligênica. Fisher percebeu que, se postulasse que a variação de traços contínuos (como a altura) era baseada na herança de múltiplos genes, cada um com pequeno efeito aditivo, poderia conciliar uma distribuição quantitativa com os princípios mendelianos (ver figura).
A estatura humana na era genômica
A figura mostra como já é possível gerar uma distribuição em forma de sino com apenas três genes, cada um tendo um alelo com efeito aditivo para “baixa estatura” (em letra minúscula) e um alelo para “alta estatura” (em letra maiúscula). A altura humana é um exemplo perfeito de herança poligênica, onde o efeito aditivo de dezenas de genes produz uma distribuição normal.
Passaram-se 90 anos desde o importantíssimo trabalho de Fisher. Nesse ínterim, foi descoberta no DNA a base bioquímica da hereditariedade e conseguimos ter um mapa da seqüência de todo o genoma humano. Haveria agora a possibilidade de identificarmos quais são os genes envolvidos na variação normal da estatura?
Antes de prosseguirmos, faremos uma pequena pausa para reflexões teóricas. Conhecemos diversas doenças genéticas humanas associadas com baixa estatura. Uma consulta ao termo short stature na bíblia do geneticista humano – o banco de dados OMIM (Online mendelian inheritance in man) – produz como resposta nada menos que 806 doenças e síndromes. Como esses são distúrbios mendelianos, os genes causais são de grande efeito e, conseqüentemente, não possuem as características dos genes que nos interessam aqui, que têm efeitos pequenos e aditivos. Como poderíamos descobrir quais são esses últimos? A metodologia genômica moderna nos proporciona uma estratégia.
No número de maio de 2008 do importante periódico Nature Genetics, foram publicados três importantes trabalhos descrevendo a descoberta de genes envolvidos na variação normal da altura humana (clique aqui para ver os resumos). O método usado nesses trabalhos foi a técnica chamada de screening genômico total, baseada na tipificação de centenas de milhares de variantes genômicos (polimorfismos de base única – SNPs) distribuídos de maneira espaçada no genoma humano e na estimativa da correlação entre esses resultados e um traço genético de interesse que, no caso, era a estatura. É apropriado que seja usada aqui a correlação, uma técnica estatística cujo precursor foi Francis Galton.
Um esclarecimento metodológico: nesses estudos, foi usada a técnica de microarranjos (também chamados de DNA chips), que permite realizar tipagens genômicas paralelas de centenas de milhares de SNPs. Essa técnica é de extraordinária eficiência, mas infelizmente os microarranjos ainda são muito dispendiosos. Nos três estudos publicados na Nature Genetics, foram tipados um total de 63 mil indivíduos, o que representaria um custo superior a 30 milhões de dólares só em DNA chips. Na realidade, os custos foram muito menores, porque os autores pediram “carona” em outros estudos de triagem genômica total que estavam sendo feitos para elucidação de doenças humanas, como o diabetes.
Os microarranjos (DNA chips) permitem o estudo simultâneo de centenas de milhares de variações genéticas (SNPs) no genoma humano.
Combinados, os três estudos caracterizaram 54 SNPs cujo polimorfismo correlaciona-se com variação na altura humana. A maioria dos SNPs validados aparece em apenas um dos estudos – apenas dez deles foram validados em pelo menos dois estudos. Isso não é surpreendente, se considerarmos que cada SNP tem um efeito individual pequeno e, assim, tem uma chance minúscula de ser descoberto. De fato, a diferença de estatura gerada por cada um desses SNPs em um indivíduo homozigoto com o alelo “alto” e um homozigoto com o alelo “baixo” é de 0,4 a 0,8 cm apenas. Em conjunto, os 54 SNPs explicam menos de 10% da variação da estatura humana. Isso demonstra que há ainda muitos mais genes a serem descobertos.
Escrutinizando a vizinhança genômica desses SNPs, os autores identificaram os genes candidatos a terem influência sobre a estatura humana. Os genes identificados pertenciam aos mais diversos grupos funcionais. Não é nada surpreendente que os principais grupos fossem de genes envolvidos na matriz extracelular (incluindo cartilagem e ossos), no desenvolvimento embrionário (especialmente um subgrupo chamado de Hedgehog) e no controle do ciclo celular e do câncer.
Em última análise, o que podemos concluir a partir desses estudos? Primeiro, eles demonstram que, no futuro, seremos capazes de fazer a predição da estatura adulta de uma criança a partir apenas de dados de tipificação genética. Segundo, eles comprovam experimentalmente o modelo poligênico de Ronald Fisher para a altura humana.
É importante notar o amplo arco de sofisticação do nível de entendimento sobre a variação da estatura humana, que se inicia com as observações empíricas biométricas de Galton, passa pela construção de um modelo poligênico por Fisher e termina com a demonstração da arquitetura genômica do traço poligênico. Por outro lado, é uma lição de humildade verificar que, mesmo com as nossas armas moleculares mais poderosas, não conseguimos explicar mais que uma pequena porção da variação normal de uma característica humana aparentemente tão simples como a estatura.
Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
13/06/2008