Os neurorrobôs estão chegando!

Quando você se senta à mesa para jantar, nem se dá conta, mas um turbilhão de informações é processado pelo seu cérebro apenas para decidir se você deve pegar o saleiro antes ou depois de servir-se de batatas fritas. Parece fácil decidir: primeiro as batatas, depois o sal. E parece ainda mais fácil realizar a tarefa com o braço. No entanto, seu cérebro precisa primeiro escanear a mesa com os olhos e construir um “mapa espacial” dos objetos (pratos, talheres, copos, guardanapos…). Depois ele precisa avaliar o que lhe trará mais prazer: comer o sal puro, as batatas sem sal, ou colocar o sal sobre as batatas para depois comê-las? Decidido o objetivo mais adequado, seu cérebro precisa definir o que é mais prático: usar a mão esquerda ou a direita? Segue-se uma complicada avaliação balística de como deve ser o movimento de seu braço para alcançar os alvos na seqüência certa, sem derrubar o copo ou esbarrar no seu amigo ao lado. Só então tudo está pronto para o comando muscular que realiza de fato os movimentos do braço.

Você faz isso tudo com facilidade, rapidamente e sem pensar. Mas imagine a dificuldade de uma pessoa que sofreu um acidente vascular ou traumatismo na medula espinhal e se encontra impossibilitada de mover os braços. O cérebro faz tudo certo: toma as decisões adequadas, faz a avaliação balística e planeja os movimentos, mas… os braços não se movem. Pior ainda é a situação dos portadores da síndrome de encarceramento, cuja lesão cerebral os impede de qualquer movimento da cabeça ou do corpo, a não ser piscar os olhos. Nesse caso não é possível sequer pedir ajuda a alguém, pois a fala não sai! A angústia desses doentes pode ser avaliada pelo relato do jornalista francês Jean-Dominique Bauby, que publicou o impressionante O escafandro e a borboleta , livro inteiramente ditado em código por piscadelas dos olhos à enfermeira que o atendia no hospital.

O cérebro no comando
Cientistas se preparam para aliviar as dificuldades desses indivíduos, utilizando a neuroprotética , um ramo tecnológico da neurociência cujo objetivo é decodificar a atividade neural responsável por cada uma dessas etapas que precedem os movimentos, e utilizá-la para comandar dispositivos robóticos (braços mecânicos, cadeiras-de-rodas inteligentes e outros). Serão os neurorrobôs, comandados pelo próprio cérebro do usuário.

Alguns grupos de pesquisadores se destacam nessa linha de trabalho. Um deles – comandado pelo brasileiro Miguel Nicolelis na Universidade Duke, Estados Unidos – já conseguiu reproduzir seus resultados em sujeitos humanos durante neurocirurgias. Outro – comandado por Richard Andersen no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech) – conseguiu até decodificar a atividade neural do pensamento, gravando o que seriam as “intenções e motivações” dos movimentos.

São grandes as dificuldades para chegar a resultados que de fato beneficiem pacientes na prática médica, mas já há um bom número de experimentos realizados em animais (e até em seres humanos, como mencionamos) que indicam grande possibilidade de sucesso no futuro próximo. Os neurocientistas envolvidos com essa linha de pesquisa primeiro captam a atividade multineuronal de regiões do cérebro que participam nas funções descritas acima, desde a avaliação espacial do ambiente e a tomada de decisões até a avaliação balística e o planejamento motor. Isso pode ser feito em animais de laboratório ou mesmo em pacientes durante neurocirurgias, e permite armazenar em computador o padrão de impulsos de dezenas de neurônios simultaneamente, enquanto o sujeito se prepara para realizar uma seqüência de movimentos (embora ela não seja necessariamente realizada de fato).

Foi possível assim determinar a atividade neural das etapas cognitivas (primeiro o sal ou as batatas?), das etapas balísticas e de planejamento (qual a melhor trajetória para o movimento do braço?) e das etapas de execução motora (mover o braço direito em direção às batatas, prender a colher com os dedos, girar o punho para pegar as batatas…). Em seguida foi necessário testar se essa atividade multineuronal era capaz de reproduzir em um dispositivo robótico os movimentos desejados. Era!!

Nos experimentos de neuroprotética, o macaco pode controlar o braço-robô diretamente, ou então o computador o faz (setas vermelhas), utilizando a atividade multineuronal registrada do cérebro do animal (figura modificada de Chapin JK (2004) Nature Neuroscience , vol. 7, pp. 452-455). 

O futuro à vista
O sucesso desses experimentos levou a pensar numa neuroprotética cognitiva , através da qual se pudesse captar e decodificar não apenas a atividade neural referente ao planejamento e execução dos movimentos, mas também à intenção (objetivos imediatos) e à motivação deles (objetivos remotos), ao seu conteúdo emocional e à atenção necessária para focalizar as ações do modo mais eficiente e econômico.

Além disso, para que esses resultados possam ser transformados em tecnologias exeqüíveis será preciso miniaturizar ao máximo os sistemas de registro da atividade neural com chips implantáveis e biocompatíveis, bem como desenvolver dispositivos externos inteligentes, isto é, dotados de computadores suficientemente sofisticados para decodificar a atividade neural de modo a permitir a operação de braços mecânicos e cadeiras-de-rodas.

Os desenvolvimentos subseqüentes beiram a ficção científica. Será possível comandar robôs remotos (no fundo do mar ou no espaço) com o pensamento? Será viável decodificar a atividade neural do cérebro de um indivíduo paraplégico em um padrão de estimulação muscular que permita movimentos adequados de seu próprio corpo (sem dispositivos robóticos), passando ao largo da lesão medular? Será possível fazer tudo isso em indivíduos saudáveis, aprimorando a sua capacidade motora para torná-los capazes de realizar movimentos de grande precisão e alto grau de infalibilidade? Perguntas ainda sem resposta, em 2006. Quem sabe em 2010? SUGESTÕES PARA LEITURA
J.D. Bauby (1997) O escafandro e a borboleta . São Paulo: Martins Fontes, 142 pp.
S. Musallam e colaboradores (2004) Cognitive control signals for neural prosthetics. Science , vol. 305, pp. 258-262.
J.K. Chapin (2004) Using multi-neuron population recordings for neural prosthetics. Nature Neuroscience vol. 7, pp.452-455.
P.G. Patil e colaboradores (2004) Ensemble recordings of human subcortical neurons as a source of motor control signals for a brain-machine interface. Neurosurgery , vol. 55, pp. 27-38.
M.A.L. Nicolelis (2005) Computing with thalamocortical ensembles during different behavioural states. Journal of Physiology vol. 566.1, pp. 37-47.
B. Pesaram e colaboradores (2006) Cognitive neural prosthetics. Current Biology , vol. 16: pp. R77-R80. 

Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
30/06/2006