Os três quilinhos e a visita da cegonha

É muito raro encontrarmos uma mulher que esteja inteiramente satisfeita com o seu corpo. Mesmo se perguntarmos para Juliana Paes, receberemos provavelmente a mesma resposta: preciso perder uns três quilinhos! Contudo, indícios obtidos nos últimos anos mostram que, apesar dessa insatisfação, alguma “gordurinha” é essencial para várias funções fisiológicas femininas.

Atualmente o tecido adiposo – que constitui o que chamamos popularmente de gordura – é visto como um depósito de energia e como algo associado com a proteção dos órgãos internos, mas não só. Pesquisas indicam que esse tecido é, na verdade, o maior órgão endócrino de nosso organismo e que a enorme variedade de hormônios produzidos por ele está relacionada com o metabolismo de glicose e dos esteroides, com o sistema imune e mesmo com a reprodução.

Pesquisas indicam que o tecido adiposo é o maior órgão endócrino de nosso organismo

O tecido adiposo está distribuído por quase todo o organismo e se situa principalmente em uma região localizada abaixo da derme conhecida como hipoderme. A quantidade e a disposição desse tecido dependem do balanço entre o acúmulo de gordura (lipogênese) e a sua quebra (lipólise) e utilização metabólica.

Os adipócitos – as principais células do tecido adiposo – podem se multiplicar, inclusive na idade adulta. É por isso que lipoaspirações caríssimas (e perigosas!) não resolvem o problema do excesso de peso ou de gordura localizada em pessoas que não mudam seus hábitos alimentares!

Entre os “novos” papéis recém-descobertos do tecido adiposo, sua atuação na reprodução tem despertado o interesse de diversos grupos de pesquisa. Isso se deve à descoberta recente das adipocinas – uma série de moléculas produzidas por alguns tipos celulares presentes no tecido adiposo. Entre elas estão moléculas envolvidas na sinalização celular (como as citocinas e quimiocinas), hormônios, fatores de crescimento e do complemento, além de proteínas associadas com a homeostase e formação de vasos e com a regulação da pressão sanguínea e do metabolismo de lipídios e de glicose.

Obesidade e problemas reprodutivos

Mais do que a simples quantidade de tecido adiposo, o que importa na verdade é a sua distribuição no organismo. Excesso de gordura na região superior do corpo está associado com disfunções ovulatórias e problemas endócrinos. Por outro lado, aumentos na gordura abdominal e na região inferior do corpo podem causar um acúmulo de tecido adiposo visceral e intra-abdominal e afetar o metabolismo normal do indivíduo.

Pesquisas recentes indicam que há um aumento do tecido adiposo em pacientes portadores de síndrome dos ovários policísticos, a mais comum e a mais estudada das doenças endócrinas de mulheres em idade reprodutiva. Esse excesso está presente em 50% das pacientes com a síndrome e é um dos sinais utilizados para a sua detecção.

Mulheres obesas têm maiores chances de apresentar problemas reprodutivos

Além disso, mulheres obesas têm maiores chances do que as não obesas de apresentar problemas reprodutivos, como ausência de ovulação, redução da fertilidade, infertilidade e abortos espontâneos. Esses quadros podem estar relacionados com alterações em diversos hormônios como a insulina e hormônio luteinizante.

A produção de pelos pubianos em meninas antes dos oito anos, conhecida como adrenarca prematura, está relacionada com a produção de andrógenos adrenais e é um quadro associado com a obesidade, desenvolvimento acelerado e baixo peso durante o nascimento. Garotas com adrenarca prematura têm uma maior chance de desenvolverem síndrome metabólica, diabetes tipo 2 e doenças cardiovasculares.

Tecido adiposo
Tecido adiposo amarelo visto ao microscópio (foto: Departmento de Histologia, Jagiellonian University Medical College).

Baixo peso e problemas reprodutivos

Não é apenas o excesso de gordura corporal que pode causar problemas. Sua escassez também pode comprometer funções orgânicas como a reprodução. E aqui não estamos falando de anorexia, mas sim de mulheres de saúde aparentemente normal, mas com o peso muito reduzido.

Os efeitos das adipocinas começam a se fazer sentir muito cedo durante o desenvolvimento feminino. A puberdade é caracterizada frequentemente pelas transformações hormonais, comportamentais e pela maturação sexual. Contudo, essa fase também é marcada no sexo feminino por um aumento na deposição de gordura. Esse acúmulo (e principalmente sua distribuição em certos locais do organismo) é essencial para que sejam vencidas algumas das etapas da puberdade.

Os mecanismos associados com a deposição de gordura e puberdade são complexos e ainda não estão totalmente compreendidos. Contudo, há evidências de que uma adipocina conhecida como leptina – que surpreendentemente está associada com a lipólise e não com a lipogênese – está relacionada com a maturação sexual.

A leptina é um polipeptídeo produzido por adipócitos do estômago, da placenta e das glândulas mamárias. Uma mutação no gene (ob/ob) que provoca a obesidade mórbida em ratos levou à descoberta desse gene e, posteriormente, à clonagem de seu produto. Essa proteína foi batizada de leptina, palavra proveniente de leptos, termo que significa ‘magro’ em grego.

Os níveis de leptina elevam-se em mulheres antes e durante a puberdade. Esse aumento está associado inicialmente com a presença no tecido adiposo de uma enzima conhecida como aromatase. Essa enzima está associada com a conversão de testosterona em estrógenos e estes, por sua vez, induzem a produção de leptina.

Leptina e puberdade

Mulheres que possuem mutações na leptina ou em seu receptor apresentam um atraso no início da puberdade, além de deficiências nas gonadotrofinas, hormônios que controlam a produção de esteroides.

Daniele Hypólito
A ginasta brasileira Daniele Hypólito em ação. Mulheres com massa corporal reduzida devido à prática de ginástica olímpica e outros esportes podem apresentar níveis baixos de leptina e atrasos na puberdade (foto: Wilson Dias / Agência Brasil).

Há algum tempo, está estabelecido pela ciência que mulheres necessitam de uma proporção mínima de gordura em seus corpos para que possam apresentar ciclos menstruais normais. Mulheres com uma massa corporal muito reduzida devido à prática de atividades físicas desgastantes como a ginástica olímpica, balé, basquete ou corridas de fundo frequentemente apresentam níveis baixos de leptina em sua circulação e atrasos em sua puberdade. Um quadro similar também é observado em pacientes com anorexia nervosa.

Uma das funções das secreções produzidas pelo tecido adiposo é sinalizar para o sistema nervoso central que existem estoques energéticos adequados para a reprodução. Portanto, um nível de gordura corporal deve estar presente para que se iniciem os ciclos ovulatórios normais. Mulheres que possuem uma massa corporal reduzida apresentam um decréscimo na produção de gonadotrofinas e em sua reprodução. A leptina parece ser o mediador desse processo e age por meio de neurônios situados no núcleo periventricular anteroventral.

Pacientes com lipodistrofia – uma ausência completa de gordura subcutânea – apresentam, entre outras deficiências, níveis baixos de leptina. Quando essas pacientes são tratadas com esse hormônio, elas em pouco tempo recuperam seus ciclos menstruais, mesmo antes de apresentarem um acúmulo de gordura corporal.

Pacientes com redução severa no consumo de calorias apresentam distúrbios na ovulação.

Talvez algumas leitoras possam estar até pensando que, se perderem peso, estariam resolvendo dois problemas ao mesmo tempo, pois ficariam o corpo com que sonham e evitariam os percalços da menstruação e da terrível TPM. Contudo, pacientes com uma redução severa no consumo de calorias apresentam distúrbios na secreção de gonadotrofinas e na ovulação. Além disso, essas mulheres acabam sofrendo com todos os outros problemas relacionados com a carência desses hormônios, alguns dos quais ocorrem durante a menopausa.

Portanto, é melhor que as mulheres continuem a se preocupar com o excesso de peso, mas que também preservem suas curvinhas. Nós, homens, agradecemos…

 

Jerry Carvalho Borges
Departamento de Medicina Veterinária
Universidade Federal de Lavras

 

Sugestões para leitura

Bluher,M. (2009). Adipose tissue dysfunction in obesity. Exp. Clin. Endocrinol. Diabetes 117, 241-250.
Bohler,H., Jr., Mokshagundam,S., and Winters,S.J. (2009). Adipose tissue and reproduction in women. Fertil. Steril.
Gnacinska,M., Malgorzewicz,S., Stojek,M., Lysiak-Szydlowska,W., and Sworczak,K. (2009). Role of adipokines in complications related to obesity. A review. Adv. Med. Sci. 1-8.
Karastergiou,K. and Mohamed-Ali,V. (2009). The autocrine and paracrine roles of adipokines. Mol. Cell Endocrinol.
Nelson,S.M. and Fleming,R. (2007). Obesity and reproduction: impact and interventions. Curr. Opin. Obstet. Gynecol. 19, 384-389.
Stofkova,A. (2009). Leptin and adiponectin: from energy and metabolic dysbalance to inflammation and autoimmunity. Endocr. Regul. 43, 157-168.