Ovos fossilizados de crocodilomorfos

“Ovos fossilizados?” – foi a exclamação de um leitor da coluna quando mencionei o tema que iria abordar este mês. Posso imaginar que essa surpresa seja compartilhada por muitos outros leitores devido ao ineditismo do assunto.

Que fósseis são raros, todos nós sabemos. No entanto, nunca é demais enfatizar que a preservação de alguns materiais tende a ser mais rara do que a de outros. E ovos – evidência direta da reprodução de diversos organismos – caem exatamente nessa categoria.

Levando-se em conta todos os registros de ovos fossilizados, os que são associados aos crocodilomorfos estão dentre os mais interessantes

Talvez surpresa ainda maior seja o fato de que, levando-se em conta todos os registros de ovos fossilizados, os que podem ser associados aos crocodilomorfos estão dentre os mais interessantes, devido a sua grande escassez – não apenas no Brasil, mas também em nível mundial.

Por isso, a descoberta realizada por Carlos Oliveira, da Fundação Educacional de Fernandópolis (SP), é tão importante: uma série de ovos, incluindo ninhos de aproximadamente 70 milhões de anos. O resultado da pesquisa de Carlos e de seus colaboradores acaba de ser publicado na Palaeontology, uma das revistas mais tradicionais no campo do estudo de fósseis.

A descoberta

Nem sempre um pesquisador consegue avaliar a importância de sua descoberta quando esta é realizada no campo. Em 2006, Carlos teve a oportunidade de participar de uma atividade de coleta de fósseis nas proximidades da cidade de Jales, interior de São Paulo.

Nessa região, são relativamente comuns as exposições das camadas denominadas pelos geólogos de Formação Adamantina. Esta, por sua vez, faz parte de uma sequência de rochas bem maior que é conhecida como Grupo Bauru, muito importante por ter revelado uma expressiva quantidade de vertebrados fósseis, incluindo dinossauros e crocodilomorfos.

No caso da Formação Adamantina, as rochas – que possuem uma coloração avermelhada muito característica – constituem-se de arenitos formados há cerca de 70 milhões de anos, quando toda essa região era banhada por diversos rios.

Sabendo que na região já haviam sido reportados fósseis, Carlos avistou em um terreno alguns ossos. Em outra parte, observou pedaços esbranquiçados, que contrastavam muito com a rocha vermelha. E havia uma concentração relativamente grande desse tipo de material ao longo de uma faixa de 300 metros. Já no campo, ele suspeitou que poderiam ser de ovos.

Ovos fossilizados
Ninho com ovos do crocodilomorfo ‘Baurusuchus’, antes (à esquerda) e depois (à direita) de preparados. Os pesquisadores encontraram concentração relativamente grande desse tipo de material ao longo de uma faixa de 300 metros. (fotos: Carlos Oliveira)

Voltando para o laboratório, Carlos contatou Rodrigo Santucci, atualmente professor da Universidade de Brasília em Planaltina (GO). Rodrigo, apesar de bastante jovem, já tinha um bom treino de campo naquele tempo. Foi ao local com Carlos e, juntos, iniciaram as escavações.

Encontraram algo em torno de 17 (!) ninhadas situadas em três níveis diferentes. A grande maioria dos ovos estava quebrada – sugerindo que os filhotes tinham nascido, deixando os ovos. Mas alguns estavam relativamente completos. Todos são alongados, com uma forma elíptica. O tamanho varia entre 58 e 65 milímetros – ou seja, eram semelhantes aos de uma galinha.

Encontrados os ovos, ficava a pergunta: qual animal os teria postado?

Identificação

A questão de como identificar o ‘dono’ dos ovos é algo bem complicado na paleontologia e, muitas vezes, incorre-se em erros. Talvez o mais famoso dos equívocos tenha sido a identificação dos ovos do dinossauro Oviraptor encontrados em depósitos na Mongólia.

Quando descoberto, os fósseis de alguns indivíduos desse dinossauro estavam em contato direto com os dos ovos e imaginou-se que eles os comiam; até o seu nome veio dessa percepção (Oviraptor significa, em tradução livre, ladrão de ovos). Porém, novas descobertas demonstraram que os ovos, na realidade, pertenciam àquele dinossauro e ele estava cuidando deles (Leia a coluna de 06/03/2009).

Voltando ao material de Jales… Para se ter certeza se um ovo pertence a uma determinada espécie, o ideal seria o encontro de embriões. Infelizmente, apesar dos esforços da equipe de Carlos, isso não ocorreu. Por outro lado, durante os trabalhos, foi encontrado um bom número de ossos, incluindo crânios, todos do crocodilomorfo Baurusuchus.

Esqueleto de ‘Baurusuchus’
Esqueleto parcial de um espécime de ‘Baurusuchus’ encontrado em associação com os ovos. Devido a essa associação, pode-se determinar que os ovos pertenciam a esse crocodilomorfo. (foto: Carlos Oliveira)

Como esse é o único fóssil encontrado naquele local, os pesquisadores puderam assumir, com um bom grau de certeza, que os ovos pertenciam àquele crocodilomorfo extinto.

Outras características corroboram essa interpretação, tais como a espessura da casca – bem fina – e sua microestrutura. Aliás, a microestrutura – determinada a partir de uma técnica própria em que partes da casca do ovo são serradas e examinadas em microscópios – é quase como um DNA, podendo distinguir ovos postados por diferentes grupos de vertebrados.

O material de Jales é bem típico de crocodilomorfos e diferente do que se observa em materiais de dinossauros, por exemplo.

Conclusões

Na pesquisa com ovos, criou-se uma taxonomia própria para estabelecer diferentes tipos, de acordo com a sua microestrutura e outras feições. Se as características gerais forem as mesmas de um material conhecido, o ovo recebe aquela designação, se forem diferentes, faz-se necessário estabelecer um novo nome.

Os autores criaram o nome Bauruoolithus fragiles – a primeira espécie de ovos fossilizados da América do Sul

Foi exatamente esse o caso do material de Jales. Existem apenas duas espécies de ovos fossilizados que receberam nome formal, ambas pertencentes ao gênero Krokolithes. Como o material encontrado em Jales exibe diversas feições distintas, desde aspectos microestruturais da casca como de sua superfície, os autores criaram o nome Bauruoolithus fragiles – a primeira espécie do tipo da América do Sul.

Outro fator decorrente do estudo de Bauruoolithus: as feições dos ovos encontrados, muito distintas do que se observa em outros crocodilomorfos, incluindo os recentes, levantaram a suspeita de que poderia haver diferenças nos modos de reprodução dos crocodilomorfos que produziram ovos como o Bauruoolithus.

Escavações em Jales, SP
Trabalho de campo durante a coleta dos ovos do crocodilomorfo ‘Baurusuchus’, descoberto por Carlos Oliveira (à direita). Seu estudo sugere haver diferenças nos modos de reprodução dos crocodilomorfos que produziram ovos como os ‘Bauruoolithus’. (foto: Carlos Oliveira)

Apesar da dificuldade de se estabelecerem detalhes de como ocorria essa reprodução, a descoberta do material de Jales indica a necessidade de serem realizados estudos mais detalhados de ovos – não apenas os fósseis, mas também os de organismos recentes – que podem ajudar a entender essas variações encontradas nas cascas, o que elas significam para a evolução dos grupos e o grau de influência do ambiente.

Essa seria uma típica linha de pesquisa unindo paleontólogos e biólogos, cujos resultados poderiam aumentar o nosso conhecimento sobre o mundo que nos cerca.

Alexander Kellner
Museu Nacional/ UFRJ
Academia Brasileira de Ciências

 

Paleocurtas

As últimas do mundo da paleontologia
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Susan Turner e Carole Burrow (Queensland Museum, Austrália) acabam de publicar no Journal of Vertebrate Paleontology a descrição de um novo tubarão fóssil: o Reginaselache morrisi. O trabalho é baseado em mais de 100 dentes e espinhos encontrados em rochas de 330 milhões de anos na parte central de Queensland. O tubarão se caracteriza por possuir uma morfologia bem distinta dos demais, indicando que esses animais podiam mastigar o alimento, o que é bastante incomum para o grupo.

A Sociedade de Paleontologia de Vertebrados dos Estados Unidos irá organizar o seu encontro anual em Las Vegas entre 2 e 5 de novembro de 2011. Congregando os pesquisadores que se dedicam a estudar os mais diferentes aspectos dos vertebrados fósseis, essa reunião é uma boa oportunidade para se informar sobre as novidades em termos de pesquisas nessa área. Mais informações na página da sociedade na internet.

Acaba de ser encontrado um novo primata nos depósitos do Paleoceno (55 milhões de anos) em Alberta, Canadá. A descrição do Phoxomylus puncticuspis é baseada em um dente molar superior e evidencia uma linhagem desconhecida desse grupo de mamíferos. O artigo foi publicado na Acta Paleontologica Polonica e é assinado por Richard Fox (Universidade de Alberta, Edmonton).

David Hone (Instituto de Paleontologia de Vertebrados, Pequim, China) e colegas acabam de publicar a descrição de uma nova espécie aparentada ao T. rex denominada Zhuchengtyrannus Magnus, aumentando a diversidade dos tiranossauros procedentes da Ásia. Os pesquisadores basearam-se em maxila e mandíbula encontradas em rochas do Cretáceo Superior, na província de Shangong (China). O estudo acaba de ser publicado na Cretaceous Research.

Attila Ösi (Museu de História Natural Húngaro, Budapeste, Hungria) acaba de publicar na Lethaia um estudo sobre como as feições do crânio de pterossauros primitivos podem indicar o seu hábito alimentar. A pesquisa corroborou as propostas de que as formas mais primitivas desses répteis voadores se alimentavam possivelmente de insetos, tendo posteriormente surgido espécies cuja dieta alimentar se constituía de peixes.

A Science publicou recentemente um artigo onde Lars Schmitz e Ryosuke Motani, ambos da Universidade da Califórnia (Estados Unidos), conseguiram estabelecer uma metodologia para separar dinossauros diurnos e noturnos. Para isso, os pesquisadores mediram a relação do tamanho da órbita com o diâmetro do seu anel esclerótico (conjunto de ossos comumente encontrados protegendo o globo ocular nos répteis). Os resultados mostram que muitos dinossauros carnívoros eram noturnos enquanto os herbívoros podiam transitar tanto durante o dia quanto na parte da noite. Os pterossauros, também enfocados no estudo, eram diurnos.