Um dos túneis do LHC, que entrou em operação este mês. A parte mostrada na foto fica próxima ao detector LHCb (veja em http://www.professorcarlos.com/ uma descrição desse detector) Foto: Julian Herzog.
A avalanche de notícias que tomou conta de jornais e revistas do mundo inteiro sobre a entrada em operação do Grande Colisor de Hádrons (LHC, na sigla em inglês) determinou o tema desta coluna. Vamos passar em revista alguns conceitos por trás do funcionamento desse acelerador de partículas.
Para não repetir informações já divulgadas, sugiro a leitura de alguns textos disponíveis na CH On-line – este artigo de Ignácio Bediaga traz detalhes técnicos sobre o LHC, cuja entrada em operação também foi destacada nesta coluna de Adilson de Oliveira; esta reportagem de Franciane Lovati discute os desafios atuais da física de partículas. O leitor também vai encontrar noções básicas de física de partículas neste livro de Maria Cristina Abdalla e no meu blog.
Desde os tempos mais remotos, o homem persegue a idéia do átomo, aquilo que seria o constituinte indivisível da matéria. No entanto, o primeiro modelo atômico baseado em evidências experimentais só foi elaborado a partir de 1911, pelo neozelandês Ernest Rutherford (1871-1937) e seus colaboradores. Com a descoberta do próton, em 1919, e do nêutron, em 1932, o modelo de Rutherford chegou ao formato em que ainda é largamente ensinado em nossas escolas.
Um dos grandes desafios enfrentados pelos físicos nos anos 1920 e 1930 era a explicação do fenômeno conhecido como decaimento beta, no qual um nêutron transforma-se em um próton e um elétron, que é expelido pelo núcleo e identificado como radiação beta. Sempre que esse fenômeno era observado, o elétron apresentava diferentes valores de energia, o que era incompatível com a conservação de energia e da quantidade de movimento prevista em teoria.
A coisa era tão esquisita que o próprio Niels Bohr (dinamarquês, 1885-1962) pensou que essas sagradas leis não deveriam valer para os fenômenos nucleares. Numa atitude desesperada, o austríaco Wolfgang Pauli (1900-1958) propôs, em 1930, a existência de uma partícula sem carga elétrica e com massa semelhante à do elétron.
A foto acima é a evidência da primeira observação de um neutrino em uma câmara de bolhas, em experimento realizado nos Estados Unidos em 1970. Um neutrino atinge um próton, resultando três traços de partículas (à direita). O traço mais longo é de um múon, o mais curto é do próton, e o terceiro é do méson pi, criado durante a colisão (foto: Laboratório Nacional de Argonne).
Essa partícula seria a responsável pela conservação de energia e quantidade de movimento no decaimento beta. Em 1933, o italiano Enrico Fermi (1901-1954) a denominou neutrino (pequeno nêutron, em italiano). Ela foi a primeira partícula elementar resultante de uma previsão teórica. Porém, por ser neutra e muito leve, passou 26 anos escapando dos detectores inventados pelo homem.
Energia negativa e antimatéria
À margem dos estudos nucleares, o britânico Paul Dirac (1902-1984) tentava, entre 1928 e 1930, explicar o comportamento do elétron em termos da relatividade e da teoria quântica. Seus estudos resultaram no que hoje chamamos de equação de Dirac. Na época, ela causou perplexidade, porque previa a existência de um elétron com carga positiva e energia negativa.
A interpretação da energia negativa é muito complicada para ser tratada aqui, mas o fato relevante é que esse resultado deu origem ao conceito de antimatéria. A implicação disso é que, além do elétron, deveria existir um antielétron. A teoria de Dirac também previa que partícula e antipartícula deveriam se aniquilar se colocadas suficientemente próximas uma da outra.
Mais impressionante do que essas previsões foi a confirmação experimental da existência da antimatéria, obtida pelo americano Carl David Anderson (1905-1991) em 1932, com a descoberta do pósitron – o antielétron postulado por Dirac –, utilizando raios cósmicos. O impacto de tudo isso pode ser avaliado pela rapidez com que eles ganharam o Nobel de Física: Dirac em 1933 e Anderson três anos depois. Um ano após seu prêmio, Anderson descobriu o múon, 200 vezes mais pesado que o elétron, e que na época se imaginava ser uma espécie de méson, partícula prevista pelo japonês Hideki Yukawa (1907-1981).
No final dos anos 1940, acreditava-se que as partículas elementares eram elétron, próton, nêutron, neutrino, múon e méson pi. A edição de dezembro de 1949 da Physical Review publicou um artigo em que Fermi e o sino-americano Chen Ning Yang (1922-) questionam o status de “elementar” para muitas das partículas até então descobertas. Para ser “elementar”, a partícula não pode ter qualquer estrutura interna: tem que ser algo como um ponto material.
Para Fermi e Yang, algumas dessas partículas, sobretudo os mésons, poderiam ser compostas de um núcleon (próton ou nêutron) e sua antipartícula. O pequeno artigo, de cinco páginas, conceitualmente elegante e ousado – o antipróton e o antinêutron só seriam descobertos seis anos depois –, deu início a uma corrida desenfreada por uma explicação para a composição das partículas recém descobertas.
Surge o quark
O resultado mais frutífero foi o modelo de quark, e deste para o modelo padrão foi um salto. Embora a denominação quark tenha sido criada pelo americano Murray Gell-Mann (1929-), o modelo foi elaborado simultaneamente por ele e pelo russo George Zweig (1937-). De acordo com o modelo, próton e nêutron são compostos por três quarks, enquanto os mésons são compostos por um quark e um antiquark.
Um aspecto desagradável na história da física de partículas, sobretudo para o leigo, é a sucessão de novos termos para denominar novas partículas e novos tipos de interação, formando um cenário geralmente confuso e não intuitivo. Felizmente, com o advento do modelo padrão, este cenário foi consolidado com uma estrutura mais palatável.
Representação esquemática de um próton (esquerda) e de um nêutron. Ambos são formados por três quarks – no caso do próton, dois up e um down, e vice-versa no caso do nêutron (arte: Arpad Horvath).
Hoje podemos dizer que a física de partículas é suportada por um tripé: léptons (elétron, múon, tau e seus respectivos neutrinos), quarks (up, charme, superior, down, estranho, inferior), e portadores de força, ou propagadores de interação (fóton, glúon, bósons W+, W- e Z). Os quarks formam partículas compostas denominadas hádrons.
Existe perto de uma centena de hádrons, divididos em duas famílias: os mésons (quark + antiquark) e o bárions (3 quarks). O próton e o nêutron são os membros mais famosos da família bariônica. Portanto, de acordo com o modelo padrão, só temos 17 partículas elementares: 6 léptons, 6 quarks e 5 portadores de força.
Sobre essas partículas (elementares e compostas) agem três tipos de forças, ou três tipos de interações. A interação eletromagnética, que atua em todas as partículas, desde que possuam carga elétrica, e tem alcance infinito; a interação fraca, que age sobre léptons e hádrons, desde que estejam a uma distância da ordem do raio do núcleo; e a interação forte, também conhecida como força nuclear, que age unicamente sobre os quarks e hádrons, e tem alcance similar à interação fraca.
Prótons e nêutrons interagem por intermédio da força nuclear para manter o núcleo. Por outro lado, os quarks no interior do próton interagem para que este permaneça estável. Essas interações propagam-se pela ação do fóton (força eletromagnética), dos bósons (força fraca) e dos glúons (força forte).
Um modelo incompleto
A explicação da matéria pelo modelo padrão é simples e elegante, embora incompleta. O LHC é apenas a tentativa do momento para testar o modelo no ponto em que experimentos anteriores falharam. Desde os anos 1930, aceleradores de partículas vêm sendo construídos para testar modelos nucleares. Sempre que uma propriedade superou a capacidade do acelerador da época, uma nova máquina foi construída para enfrentar a dificuldade imposta pela natureza.
Para apreciarmos essa história, devemos ter em mente que todo processo de detecção de partículas elementares ou compostas é conseqüência da relação massa-energia descoberta por Einstein, expressa pela fórmula E=mc 2 . Essa fórmula foi comprovada em vários experimentos e fenômenos naturais, mas é no caso das partículas elementares que sua verificação é mais impressionante.
Vejamos o exemplo de um fóton com energia superior a 1022 elétron-volts (elétron-volt é a energia adquirida pelo elétron quando acelerado por uma diferença de potencial de 1 volt). Esse fóton pode criar um elétron e um pósitron, pois eles têm massa de repouso igual a 511 elétron-volts. Esse fenômeno, conhecido como criação de pares, mostra que energia, sob a forma de fóton, é transformada em matéria.
Com 4,3 km de raio, o anel do LHC, que fica a 100 metros de profundidade, se estende por parte da Suíça e da França. No destaque, concepção artística mostra a disposição subterrânea dos anéis do LHC (foto: CERN Genebra).
O que se pretende com os aceleradores é a obtenção de energia suficiente para a produção de partículas. Nos casos em que uma partícula elementar é lançada contra sua antipartícula, novas partículas podem surgir em conseqüência do mecanismo descrito acima, ou seja energia transforma-se em matéria.
No caso do LHC, em que prótons serão lançados contra prótons, com uma energia de colisão aproximadamente igual a 14 trilhões de elétron-volts (14 TeV), o cenário é mais complexo. Essa energia será dividida em diferentes colisões entre os quarks constituintes do próton. Ninguém sabe exatamente o que vai acontecer, mas a grande expectativa é que o bóson de Higgs dê as caras em algumas dessas interações.
Em busca do bóson perdido
Essa escorregadia e pesada partícula, com massa de repouso presumidamente superior a 100 bilhões de elétron-volts, é o que falta para completar o elenco das partículas elementares do modelo padrão. O mecanismo de Higgs, que originou o referido bóson, foi proposto por causa de uma quebra de simetria, uma dessas obsessões dos físicos.
E que história é essa de quebra de simetria? Nos anos 1960, os americanos Sheldon Glashow (1932-), Steven Weinberg (1933) e o paquistanês Abdus Salam (1926-1996) mostraram que as interações eletromagnética e fraca podiam ser unificadas, dando origem à interação eletrofraca. O propagador na interação eletromagnética é o fóton, uma partícula sem massa, mas os propagadores da interação fraca, os bósons W+, W- e Z, têm massa de repouso teoricamente prevista e experimentalmente comprovada. Isso configura uma quebra de simetria.
Para explicar isso, o britânico Peter Higgs (1929-) formulou o mecanismo que leva seu nome, segundo o qual uma partícula, batizada bóson de Higgs, é responsável por essa quebra de simetria. Mais do que isso, supostamente é ela quem origina a massa do universo.
A par dos resultados científicos previstos, aqueles que defendem os investimentos na pesquisa de física de altas energias, como de resto os investimentos em qualquer pesquisa básica, apontam os grandes benefícios colaterais do empreendimento. É certo que o conhecimento acumulado por cientistas e engenheiros no planejamento e execução do projeto terá repercussão em áreas aplicadas, tais como diagnósticos médicos, computação, tecnologia de vácuo e de baixa temperatura, entre outras. Até mesmo a falha mecânica, que interromperá o funcionamento do LHC até abril do ano que vem deverá ser instrutiva para os especialistas na manipulação de eletroímãs supercondutores.
Mas também há quem questione esses altos investimentos e quem conteste o modelo padrão e o mecanismo de Higgs. O britânico Stephen Hawking (1942-), por exemplo, chegou a apostar 100 dólares com um colega como o bóson de Higgs jamais seria detectado. Quem viver verá!
Carlos Alberto dos Santos
Colunista da CH On-line
Professor aposentado pelo Instituto de Física
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
26/09/2008