Passado exposto pelo terremoto

Está lá no portal Último Segundo, em matéria de 15 de janeiro último: “O verdadeiro terremoto do Haiti foi a sua própria história.” Não foi. O verdadeiro terremoto do Haiti aconteceu em janeiro deste ano: uma tragédia que custou mais de 200 mil vidas e vem chocando o mundo inteiro não só por aquilo que foi, mas pela realidade que revelou, mesmo a espectadores brasileiros, acostumados a lidar cotidianamente com a pobreza.

A história do Haiti vem sendo associada ao recente terremoto como se fosse causa da catástrofe, mas poucas análises de fato são feitas sobre as raízes históricas do país

A frase da reportagem não surpreende. É interessante ver como a história do Haiti vem sendo associada ao recente terremoto, como se fosse causa da catástrofe. Enquanto isso, tão poucas análises de fato são feitas sobre as raízes históricas do Haiti.

Vejamos: quando ainda era chamada Santo Domingo, a colônia francesa mais lucrativa do Caribe era também a maior produtora de açúcar do mundo no século 18. Nesse período, aliás, foi também vítima de terremotos: o historiador norte-americano James McClellan contou cem no Caribe entre 1700 e 1793.

Naquela época, a ilha hospedou um dos mais brutais e violentos sistemas escravistas das Américas e cerca de 90% de sua população era escrava. Não à toa, o país foi palco da maior revolta escrava de todos os tempos, iniciada em 1791 com a expulsão de senhores e proprietários e que culminou com a independência em 1804. Após esse evento, o Haiti não seria apenas uma nação independente, livre da escravidão; seria governado pelos descendentes daqueles que antes trabalhavam nas lavouras.

Morador do Haiti
Após a revolução que culminou com a independência do Haiti em 1804, o país, que tinha cerca de 90% de sua população escrava, passou a ser governado pelos descendentes dos negros que antes trabalhavam nas lavouras (foto: flickr.com/photos/0742 – CC BY-SA 2.0).

Episódio que abalou as Américas

Não foi um terremoto, mas o episódio abalou decisivamente a segurança dos países escravistas das Américas, que não podiam suportar estabelecer relações comerciais e diplomáticas com um país governado por descendentes de escravos. No Brasil, senhores perderam o sono com medo do haitianismo – como se convencionou chamar as notícias sobre a revolução do Haiti que rapidamente se espalharam entre livres, libertos e, principalmente, escravos. Os proprietários escravocratas sabiam que sociedade tão violenta como aquela podia produzir efeitos semelhantes.

A atitude dos Estados Unidos para com o Haiti pós-revolucionário foi magistralmente sintetizada pelo senador Thomas Hart Benton em 1825, como relata Ludwell Lee Montague no livro publicado em 1940 Haiti and the United States, 1714-1938: “Nós comercializamos com eles (Haiti), mas nenhuma relação diplomática foi estabelecida entre nós. Nós não recebemos cônsules mulatos, nem embaixadores negros. E por quê? Porque a paz de onze estados [norte-americanos] não pode ser abalada com a exibição dos frutos de uma bem-sucedida insurreição negra. (…) Não podemos permitir que, pelo assassinato de senhores e senhoras de escravos, eles encontrem amigos entre a população branca dos Estados Unidos.”

Não é de se espantar que os Estados Unidos só tenham reconhecido a independência do Haiti em 1862. E que a França tenha cobrado pesada indenização para fazer o mesmo em 1825.

É preciso refletir sobre quanto do racismo do passado ainda continua presente nas análises contemporâneas sobre a tragédia provocada pelo terremoto

Anos mais tarde, quando os Estados Unidos invadiram o Haiti em 1915, tendo-o governado até 1934, os responsáveis pela invasão justificaram-na dizendo que o povo que habitava o país era “incapaz de conservar a civilização que haviam deixado os franceses”, como bem lembrou o escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-) em artigo de 26 de julho de 1996 intitulado “Os Pecados do Haiti” (publicado originalmente no jornal Brecha 556, de Montevidéu, e que agora volta a circular na internet no portal da agência Carta Maior).

Com uma história recheada de episódios de ignorância e racismo como esses, cabe mesmo a reflexão sobre o passado do Haiti. E mais ainda: cabe refletir sobre quanto do racismo do passado ainda continua presente nas análises contemporâneas sobre a tragédia provocada pelo terremoto.

Em tempo: há bem pouco o que ler sobre a história do Haiti em português. Para os interessados no haitianismo no Brasil, recomendo dois ótimos artigos: “Experiências transatlânticas e significados locais: ideias, temores e narrativas em torno do Haiti no Brasil escravista”, publicado por Flávio Gomes na edição n.º 13 da revista Tempo; e “Sedições, haitianismo e conexões no Brasil escravista”, publicado por Carlos Eugênio Soares e Flávio Gomes na edição n.º 63 da revista Novos Estudos CEBRAP. Para quem lê inglês, um livro fundamental: Avengers of the new world: the story of the Haitian revolution, de Laurent Dubois (Harvard University Press, 2004).

 

Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro