A novela Passione definitivamente conquistou o coração do grande público brasileiro, que assiste diariamente, mesmerizado, as aventuras e desventuras familiares e amorosas de um amplo número de personagens representados por estrelas “globais”.
Em uma das subtramas, Fátima (Bianca Bin) e Sinval (Kayky Brito), que são primos em primeiro grau, pretendem se casar. Estimulados por Candê (Vera Holtz), ansiosa com as possíveis consequências reprodutivas negativas do casamento consanguíneo, eles procuram um médico-geneticista, o Dr. Bruno Guedes (Márcio Ehrlich).
Assista ao vídeo da consulta disponível no YouTube
A Rede Globo deve ser congratulada por mostrar ao público que uma consulta de aconselhamento genético é a maneira correta de lidar com situações reprodutivas de risco.
Infelizmente, a conclusão do médico de que quando os pais são primos em primeiro grau “existe um risco grande [minha ênfase] de um filho comprometido para algum tipo de doença genética grave” é excessivamente pessimista, como veremos a seguir.
A divulgação televisiva, que exagerou os riscos genéticos reprodutivos em situações que envolvem parentesco, criou desconforto e pânico em casais consanguíneos na vida real. Por isso, nesta coluna, eu gostaria de revisar o assunto com base no consenso médico-científico mais atualizado.
Doenças genéticas recessivas
O Dr. Bruno Guedes identificou corretamente que os riscos genéticos de casais aparentados estão aumentados com relação a doenças que têm herança recessiva, ou seja, aquelas nas quais a criança tem de herdar uma dose dupla do gene alterado (“mutante”) para que a doença se instale.
Indivíduos que possuem uma única dose de um gene recessivo são sadios e chamados de portadores. A maioria dos genes recessivos em uma população está “escondida” em portadores sadios. Na verdade, estudos demonstraram que cada um de nós é portador, em dose única, de três a cinco genes deletérios que seriam letais em dose dupla.
Entretanto, a frequência de doenças recessivas se mantém baixa na população, porque para que um portador tenha um filho afetado é necessário que a sua parceira também seja portadora. Se a parceira não for consanguínea, a probabilidade de que isso aconteça vai depender da frequência do gene na população, mas em geral será muito baixa.
Por outro lado, se a parceira for parente, o risco de um filho do casal receber um gene mutante em dose dupla aumenta. O impacto real desse aumento para os casais consanguíneos é que precisa ser bem entendido para informar as suas decisões reprodutivas.
Uma conclusão importante dessa explicação é que o maior risco genético de casais consanguíneos refere-se apenas a uma categoria específica de doenças genéticas raras, que são as doenças recessivas. O risco de doenças cromossômicas, como a síndrome de Down, não aumenta com a consanguinidade.
Na avaliação do casal consanguíneo, é necessário obter uma história familial detalhada para estabelecer de forma precisa o grau de consanguinidade e para identificar casos prévios de doença genética na família.
Se for verificada alguma doença genética, principalmente do tipo recessivo, o risco para o casal precisa ser calculado de acordo com as regras mendelianas bem conhecidas.
Vale a pena lembrar que tal história familial, aparentemente, não foi colhida na consulta genética de Fátima e Sinval com o Dr. Bruno Guedes.
Os riscos reais da consanguinidade
Mesmo sem qualquer história de doenças genéticas na família, ainda há um risco de doenças recessivas aparecerem.
Sabe-se que com casais normais não consanguíneos, de 2% a 3% dos recém-nascidos apresentam uma anomalia congênita importante. No caso de casais primos em primeiro grau, esse risco foi determinado empiricamente como sendo aproximadamente o dobro, ou seja, 4 a 6%.
Esse risco será progressivamente menor para consanguinidades mais distantes (primos em segundo grau, terceiro grau etc.) e maior para consanguinidades mais próximas (casamentos entre sobrinhos e tios etc.).
Certamente, o risco de 4-6%, que corresponde a 94-96% de chance de sucesso, não pode ser chamado de “grande”, como foi veiculado para o público na novela.
O aconselhamento genético é sempre não diretivo, ou seja, o geneticista informa e explica os riscos ao casal, que então faz uma decisão informada. A consulta da televisão estava correta nesse ponto, pois devem ser apresentadas opções de conduta aos consulentes.
Entretanto, além da adoção, há outras opções que não foram discutidas na novela. Entre elas está a inseminação artificial com sêmen de doador – nesse caso, a criança vai ser filha biológica da mãe, que também assume controle sobre os cuidados pré-natais. Mais recentemente, a utilização de óvulos doados se tornou uma nova possibilidade a ser considerada.
Pesquisa molecular em curso
É importante a família entender que, na ausência de história familial de alguma doença recessiva, o risco que a consaguinidade traz para a reprodução é difuso. Qualquer uma das mais de 2 mil doenças recessivas conhecidas pode aparecer. Por isso, na ausência de uma doença já vista previamente na família, ainda não é possível fazer testes genéticos eficientes.
O máximo que podemos oferecer ao casal é uma ultra-sonografia de alta resolução com biometria fetal, no segundo trimestre de gravidez, para detecção das malformações estruturais mais óbvias.
Com base nas informações propiciadas pela explosão metodológica da genética molecular, estamos pesquisando maneiras de criar testes de DNA que possam ser úteis para o aconselhamento genético de casais consanguíneos.
Dentro desse esforço, tenho colaborado com o bioinformata inglês Ian M. Carr, do Instituto de Medicina Molecular de Leeds, na Inglaterra. Nós desenvolvemos um programa de computador que fornece uma espécie de fotografia das regiões do genoma que são idênticas em um determinado casal.
A figura abaixo, fornecida pelo nosso programa a partir de exames de DNA, mostra as regiões idênticas (em verde) de um casal inglês não consanguíneo (coeficiente de relação genética inferior a 1%) e de um casal de primos de uma aldeia do Paquistão.
No casal paquistanês, 31,2% dos genomas são idênticos, evidenciando um parentesco muito mais próximo do que seria esperado simplesmente pela informação de família, certamente um reflexo de múltiplos relacionamentos consanguíneos em seus ancestrais. Casamentos entre parentes são muito frequentes no Paquistão, onde se estima que mais de 50% dos casais são primos em primeiro ou segundo grau.
O programa usa dados de testes de DNA feitos em um milhão de variantes genômicos (polimorfismos de base única – SNPs) distribuídos em todo o genoma e cujo conteúdo genético foi obtido por meio da técnica de microarranjos de DNA, como já foi explicado nas colunas de junho de 2006 e janeiro de 2010. Usando um algoritmo bastante eficiente, o programa identifica as regiões onde há identidade de múltiplos SNPs (regiões de “identidade por descendência”) e “pinta” essas regiões nos cromossomos.
A próxima etapa da pesquisa é concentrar a atenção nessas regiões e desenvolver novos algoritmos para identificar os genes recessivos deletérios nas regiões de “identidade por descendência”, ou seja, herdadas por ambos os membros do casal de um único ancestral comum.
Esperamos assim, em um ou dois anos, poder oferecer um aconselhamento genético mais preciso para casais aparentados, com base em informações obtidas do genoma e interpretadas pela bioinformática.
Sergio Danilo Pena
Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais