Pausa para o café

Passamos cerca de um terço de nossas vidas dormindo. Há indícios de que um período de 8 horas diárias de sono seja importante para a recuperação do desgaste orgânico e possa também ser essencial para consolidar memórias e o aprendizado.

Mas esse comportamento essencial tem sido comumente negligenciado: cerca de 28% dos jovens adultos normalmente dormem menos de 6 horas e meia por noite e muitos consideram que o sono compete com outras atividades. Essa carência de sono gera fadiga e afeta o desempenho diário de muitos indivíduos, pois um decréscimo no período de sono noturno de apenas 1,3 a 1,5 horas pode resultar em uma redução de cerca de um terço na capacidade de se manter alerta.

A diminuição na duração do sono está relacionada a uma série de outros problemas. Estimativas indicam que anualmente morrem de 30 mil a 50 mil pessoas em acidentes de trânsito no Brasil. Calcula-se que de 26% a 32% desses acidentes sejam decorrentes da sonolência e fadiga e que 17% das mortes sejam causadas por adormecimento ao volante. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o sono ao volante gera gastos de cerca de R$ 1,1 bilhão para o país, sem contabilizar as despesas com aposentadorias por invalidez, afastamentos do trabalho, medicação e tratamentos.

Por isso, não é surpreendente que as pessoas busquem formas de compensar o desgaste causado por essa diminuição do período de sono. Em nosso país, uma das práticas mais disseminadas é o consumo de bebidas cafeinadas. Dentre elas, o tradicional cafezinho é, sem dúvida, o campeão de preferência. 

Uma xícara de café contém cerca de 100 miligramas (mg) de cafeína, o principal composto ativo presente nessa bebida. A cafeína (1,3,7-trimetilxantina) é um alcaloide do grupo das xantinas encontrado em diversas plantas tradicionalmente utilizadas como estimulantes, como o guaraná, o chá mate, o cacau e o café (Coffea arabica). Esse composto atua sobre o sistema nervoso central e sobre o metabolismo basal, estimulando diversos processos fisiológicos, como a produção de suco gástrico, o ritmo cardíaco, a dilatação dos vasos periféricos e a atividade respiratória.

O café e o relógio biológico
A cafeína também pode interferir no nosso “relógio biológico” – o ciclo circadiano. O ritmo fisiológico diário (conjunto de fenômenos biológicos que se repetem a cada 24 horas, como o sono, o estado de alerta e a temperatura do corpo) depende de variações endógenas do mensageiro celular adenosina e de seus metabólitos. A adenosina é considerada um indutor do sono. Ela se acumula no cérebro durante o período em que estamos acordados (vigília) e é liberada quando dormimos. Essa molécula atua sobre o ciclo da melatonina, um hormônio produzido por uma parte do cérebro conhecida como glândula pineal e que controla o nosso ritmo circadiano.

Análises farmacológicas indicam que a cafeína é um antagonista da adenosina, ou seja, compete com essa molécula pela ligação com o seu receptor, localizado na membrana plasmática de suas células-alvo. Dessa forma, a cafeína pode inativar a ação da adenosina.

Mas essa capacidade estimulante da cafeína não é o principal motivo para o consumo de café no mundo. O café normalmente é consumido para relaxamento (34%) e durante interações sociais (17%), sendo raramente usado para estimulação (14%) e combate ao estresse (7%). Outras fontes de cafeína, como o chá, bebidas energéticas, chocolate, bolos, tortas, balas e medicamentos, também fazem parte da dieta de muitas pessoas e podem contribuir com até um terço da cafeína consumida diariamente.

Os males do excesso de cafeína

A cafeína pode interferir no nosso ritmo fisiológico diário e seu consumo em excesso é associado a distúrbios no sono (foto: Chad fitz/ Wikimedia Commons).

O consumo de doses elevadas de cafeína pode causar distúrbios no sono e na capacidade produtiva de seus consumidores. Análises sugerem que concentrações de cafeína superiores a 400 mg consumidas antes de se ir para a cama aumentam o tempo gasto para se conseguir dormir, causam alterações no humor e prejudicam a capacidade de realização de tarefas e de se manter alerta no dia seguinte.

Mas esses problemas são raramente observados em situações reais, pois a maior parte das pessoas não costuma consumir essa bebida antes de dormir. Uma pesquisa sobre os hábitos de consumo de café de 338 indivíduos entre 20 e 40 anos realizada por Karl Bättig, do Instituto Federal de Tecnologia, em Zurique (Suíça), indicou que 73% das pessoas consomem café durante as manhãs, 52% no almoço e apenas 18% após o jantar.

A quantidade de café consumida pela maioria da população também não parece ser suficiente para causar alterações no padrão de sono. Um consumo diário de cerca de seis a sete xícaras de café (que gera uma concentração de 6 a 7 mg de cafeína por quilo no corpo, considerando o peso médio de um indivíduo) não provoca efeitos fisiológicos verificáveis. Como a maioria da população consome a cada dia em torno de 3 mg de cafeína por quilo – valor equivalente a três xícaras de café –, essa concentração não seria capaz de alterar seu padrão de sono.

Contudo, doses mais altas – acima de 8 mg por quilo – diminuem a qualidade e a quantidade do sono. A ingestão de doses elevadas de cafeína pode causar irritabilidade, ansiedade, agitação, dor de cabeça e insônia. A administração de doses de cafeína acima de 10 gramas por quilo causa convulsões e pode levar à morte.

De vilão a mocinho

Estudos recentes mostram que o consumo moderado de café pode ter efeitos benéficos para o corpo (foto: Goele/ Wikimedia Commons).

Por outro lado, estudos recentes redimem o tradicional cafezinho. Eles mostram que essa bebida, se consumida moderadamente, pode, inclusive, ter um papel positivo na fisiologia de seus consumidores. A maioria dessas pesquisas têm associado a ingestão de bebidas cafeinadas – nas doses comumente consumidas – com a capacidade dos indivíduos de permanecerem despertos e vigilantes e não com a ocorrência de distúrbios do sono.

Um estudo liderado por Carolyn Brice e Andrew Smith, da Universidade de Cardiff, no Reino Unido, é um exemplo dessa nova tendência. Esses pesquisadores avaliaram os efeitos da ingestão diária de 3 mg de cafeína por quilo sobre a habilidade de direção de 24 voluntários jovens, sadios, não fumantes e que consumiam regularmente café.

Os resultados da pesquisa indicam que esses indivíduos, quando comparados a pessoas que não haviam consumido café, apresentavam um grau maior de alerta, vigilância visual, tempo de reação e de memorização. Esses efeitos perduravam por uma hora após o consumo da bebida. Além disso, testes mostraram uma melhoria no humor daqueles que beberam café.

Diversos outros estudos também apontam que o consumo moderado de cafeína representa uma alternativa barata e eficiente para se combater os efeitos do cansaço e para se evitar acidentes ocupacionais e de trânsito. Por isso, esse deve ser um hábito cotidiano para uma série de profissionais, como motoristas, pilotos de avião, seguranças e trabalhadores de horários noturnos, que necessitam se manter despertos e alertas por longos períodos de tempo. Mas também não podemos excluir, é claro, todos aqueles que fazem do café um bom motivo para uma pausa para colocar a conversa em dia! 

Jerry Carvalho Borges
Universidade do Estado de Minas Gerais
03/07/2009

SUGESTÕES PARA LEITURA
Ashihara,H., Sano,H., e Crozier,A. (2008). Caffeine and related purine alkaloids: biosynthesis, catabolism, function and genetic engineering. Phytochemistry 69, 841-856.
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