Passei uns 15 dias no Canadá, no fim de julho. O motivo era o congresso bianual Mercury as a Global Pollutant (mercúrio como um poluente global, em português), em Halifax, na Nova Escócia – a cidade seria a primeira escala do Titanic na América do Norte.
A conferência não trouxe qualquer revelação bombástica sobre o mercúrio, elemento poluente, volátil à temperatura ambiente e, portanto, capaz de se dispersar pela biosfera através dos ventos.
O que mais me impressionou no encontro foi observar o quão conservadores são os cientistas. Ideias e evidências que já tinham sido apresentadas em conferências anteriores e publicadas em revistas de grande circulação há mais de seis anos ainda eram desprezadas pela maioria (em tempo, não estou me referindo a nenhum trabalho meu).
Um dia, em outro evento sobre mercúrio, um americano baixinho, barbudo e de voz esganiçada me disse que ideias novas, mesmo só um pouquinho novas, levam pelo menos dez anos para serem aceitas pela comunidade científica. Vim a saber depois que ele era (e segue sendo) um dos luminares mundiais da biogeoquímica do mercúrio. Então imagino que ele devia saber do que estava falando.
Fiquei pensando com meus botões: se cientistas – supostamente mais propensos a aceitar novidades – relutam tanto em rever seus conceitos em relação a um elemento poluente, o que esperar da reação da sociedade em geral às evidências do impacto de outras substâncias, bem mais comentadas que o mercúrio e de dispersão e efeitos muito mais graves para o meio ambiente, como o gás carbônico, o metano e outros compostos coletivamente chamados de gases de efeito estufa?
Desperdício ao extremo
Entediado com boa parte das apresentações da conferência, comecei a observar ao meu redor as evidências bem concretas da enorme pegada ecológica do estilo de vida norte-americano.
No centro de convenções onde ocorreu o encontro, todo mundo vivia encasacado ou fungando devido ao frio excessivo. No shopping vizinho, idem. Achei que tal desperdício de energia fosse um mal tropical, da falta de infraestrutura, de treinamento, da obsolescência dos equipamentos, mas pelo jeito não é uma questão técnica e sim, cultural, ideológica: somos fortes, somos ricos, podemos desperdiçar um pouco para não haver dúvida a respeito. Vai encarar?
A robustez dos equipamentos urbanos (postes, hidrantes, pontes, gradis etc.) é quase obscena, especialmente daqueles construídos até meados do século passado. Aposto que com metade do metal que se gastou na fabricação de cada objeto desses, eles continuariam cumprindo sua função com solidez e garbo, mesmo com todos os rigores do clima local.
E os exemplos se sucedem sem fim. O rolo de papel higiênico que tem os mesmos 25 metros do nosso, mas é superpesado, porque tem quatro camadas e trama tão sólida que aqui seria cortado e costurado para virar roupa de boneca.
O papel de alumínio que é tão grosso que dá culpa de usar, a quentinha de alumínio que eles descartam e que nem brasileiro rico teria coragem de jogar fora, a tralha sem fim que todos têm em seus porões para a prática de esportes aquáticos e terrestres, de verão e de inverno.
Máquinas de lavar louça – com água quente, faz favor – na maioria das casas. Quantos habitantes no lar? Um, dois, três? Haja quilowatt para tão pouca vasilha.
Nas ruas, carros e camionetes enormes. No jornal, na TV, o mesmo martelamento de comerciais de carro que aqui. Motos? Há o scooter, pequeno e estiloso, e pula-se direto para a moto tipo Harley Davidson, muitas com reboque. E pior: há os estranhos veículos que são como uma moto de três rodas, reunindo, portanto, os defeitos das motocicletas e dos carros num veículo só, para dois passageiros sem bagagem (ah, esqueci, tem o reboque!).
Nas estradas, possantes camionetes rebocam trailers de sala-dois quartos, motor-homes rutilantes rebocam um carro compacto e uma moto. Alguns carros mais novos levam a menção flexfuel, mas soa como propaganda enganosa para nós, já que se refere à gasolina contendo apenas 6% de etanol.
Barato e sexy
A viagem de van entre Halifax e Montreal dura cerca de 13 horas e deu para ver e ouvir muita coisa interessante. Como o jovem casal que tem dois gatos, que custaram 400 dólares cada um. E a aluna da universidade local que tem um cachorro que está perdendo os pelos e para o qual o veterinário receitou uma dieta exclusiva de carne de pato por ao menos três meses.
Em Montreal, mais exemplos de liberalidade no uso de energia e recursos. No centro da cidade, há uma rua com intenso comércio por cerca de dois quilômetros, um verdadeiro shopping linear.
Sobre suas calçadas largas, toldos que se alinham formando duas ruas cobertas e, nas extremidades dos mesmos, umas caixas metálicas estranhas. Perguntei o que era aquilo e me disseram meio sem jeito que eram aquecedores, ligados no inverno, porque com 20 graus negativos essas lojas não suportam a concorrência daquelas situadas nos quilômetros de galerias comerciais subterrâneas que interligam as principais estações de metrô da cidade.
Argumentei que a maior parte do calor emanado pelos aquecedores se perderia, que era desperdício etc. Concordaram, rindo, acrescentando que os comerciantes tinham parte do custo extra coberto por subsídio municipal. Ah bom.
O fato é que tudo isso me deu uma impressão de excesso, de exagero, de luxo e luxúria de consumo, o que incomoda se você sabe que dá muito bem para ser feliz com muito menos do que isso.
O preço da gasolina ajuda, mais barato lá que aqui, em dólar, e mais barato ainda levando em conta a diferença salarial. Idem para os carros, baratíssimos para os nossos padrões. Parece uma conspiração. E é mesmo. A mensagem é clara: relaxe, emita carbono à vontade. É barato, é gostoso, é sexy.
Claro, há o carro híbrido, com baterias para mover um motor elétrico e um motor a explosão para ajudar nas ladeiras e recarregar as baterias quando necessário. Por total acaso, andei num. Parece um veleiro com rodas. Você não ouve nada. É gostoso, moderno, sexy, mas não é barato. Custa o dobro de um modelo de mesmo tamanho, porém menos “verde”.
A mensagem nesse caso também é clara: não se empolgue, o carro de baixo carbono está a caminho, mas não vamos parar de fazer autopeças e queimar petróleo tão cedo nem tão rápido.
Tudo isso deve ser porque eles não assinaram o Protocolo de Kyoto. Dá para entender por quê!
Dito isso, lembremos que os mesmos contrastes que observei entre nossas cidades e as do Canadá são facilmente observados em qualquer cidade brasileira. Todos querem consumir mais, e o padrão norte-americano de consumo é um ideal de muitos, mas com um planeta só e tal nível de consumo e desperdício, é privilegio de poucos.
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro