Pelo fim dos dogmatismos

“Mesmo quando há duas partes que têm razão, a justiça é um jogo ilusório, porque é sempre julgada pelo lado de quem vê.” A frase de Yoram Kaniuk, escritor israelense, é um convite à reflexão sobre os recentes acontecimentos em Gaza, no Oriente Médio. Mais do que qualquer conflito contemporâneo, neste trata-se, efetivamente, de duas partes que historicamente têm razão – e que, talvez por isso mesmo, estão cada vez mais longe de alcançar a paz.

Quando temos contato com as notícias sobre os ataques de Israel a Gaza, pouco sabemos sobre as opiniões dos próprios israelenses sobre ela. As imagens da guerra – chocantes, como todas – reforçam geralmente a idéia de um Estado homogêneo – e, consequentemente, uma sociedade homogênea – em ação contra um inimigo comum. Mas será mesmo assim? O que pensam os israelenses sobre a ocupação em Gaza? Qual o papel das universidades israelenses no conflito com os palestinos?

Partilha do território palestino aprovada pela ONU em 1947. A proposta previa um Estado judeu (em laranja) e um árabe (em amarelo).

Para saber mais, talvez seja bom esclarecermos um pouco as razões do confronto. Embora seja difícil datar seu início, seria preciso voltar pelo menos até ao fim da Segunda Guerra Mundial para entender as razões das disputas entre israelenses e palestinos.

Em 1947, a Organização das Nações Unidas (ONU) decidiu pela partilha da Palestina em dois Estados autônomos e independentes: um árabe palestino e outro judeu. Este teria 14.000 km 2 , englobando as áreas entre o deserto do Neguev e o golfo de Ácaba, o lado esquerdo do lago Tiberíades e a zona compreendida entre Tel Aviv e Haifa, enquanto o palestino, com 11.000 km 2 , estaria situado na Cisjordânia e na faixa de Gaza. A cidade de Jerusalém, cobiçada por ambos os lados, seria internacionalizada.

Nada disso aconteceu: tão logo o plano da partilha foi tornado público e a data para o fim do mandato britânico marcada, os choques entre palestinos e judeus – que já vinham ocorrendo desde os anos 1920 – intensificaram-se, com massacres de lado a lado. Os britânicos apenas observavam de longe e, no dia 14 de maio de 1948, retiraram-se. Não havia qualquer representante da ONU para substituí-los. Estava dado o sinal para o início da guerra. Guerra de independência para Israel, Nakbah (Catástrofe) para os palestinos.

O conflito e os refugiados
À proclamação oficial da criação do Estado de Israel, feita por David Ben-Gurion (1886-1973) em Tel Aviv, correspondeu o ataque dos países árabes ao redor. Israel levou a melhor, ocupando território 21% maior do que aquele designado pela ONU. A superioridade dos israelenses também era política, já que seus inimigos compunham um bloco nada coeso: o Mufti de Jerusalém pretendia “jogar os judeus ao mar”; a Síria pensava na fundação da “Grande Síria” (que incorporaria a Transjordânia, o Líbano e a Palestina); o rei Abdullah, da Transjordânia, aceitava a criação de Israel desde que anexasse parte dos territórios destinados aos palestinos – o que de fato fez, incorporando a Cisjordânia –; o Egito tomou conta da faixa de Gaza e Jerusalém foi dividida.

E os palestinos? Principais perdedores da guerra, em grande parte acabaram exilados fora do novo território israelense. Aqui tem início a principal controvérsia da guerra de 1948: a história oficial israelense defende que os cerca de 750 mil palestinos que deixaram suas terras – metade da população palestina local – o fizeram instigados pelos seus vizinhos árabes, que pretendiam usá-los na luta contra Israel, enquanto a explicação árabe defende a tese da expulsão pelas forças armadas israelenses.

Sejam quais tenham sido, de fato, os motivos da saída, em 1950, 957 mil pessoas – cerca de metade da população palestina – vivia nos campos estabelecidos pela UNRWA (agência criada pela ONU em 1949 para tratar dos problemas dos palestinos refugiados da guerra), sem o direito de retornar às suas casas nem de receber cidadania nos países árabes vizinhos, com exceção da Jordânia.

No mesmo ano, foi aprovada a Lei do Retorno pelo Parlamento de Israel, concedendo cidadania israelense a todos os judeus que desejassem imigrar para o novo país, assim como aos 160 mil árabes palestinos que permaneceram em seus locais de origem. É assim que o momento de fundação do Estado de Israel, solução dos problemas dos refugiados judeus da Segunda Guerra Mundial, está ligado indelevelmente à criação do problema dos refugiados palestinos – que, 60 anos depois, ainda persiste.

Intercâmbio intelectual
O que nos traz de volta às universidades e aos intelectuais israelenses e palestinos. Já há algum tempo, o intercâmbio acadêmico entre israelenses e palestinos, assim como as iniciativas conjuntas entre intelectuais de ambos os lados, deixou de ser novidade.

O músico Daniel Barenboim (1942-), em pé, e o filósofo Edward Said (1935-2003), em primeiro plano. As iniciativas criadas por eles estão entre os melhores exemplos de cooperação intelectual entre israelenses e palestinos.

Ficou famoso o livro de Edward Said e Daniel Barenboim, Paralelos e paradoxos, baseado em entrevistas e conversas realizadas entre os dois. O livro é a parte mais conhecida da Fundação Barenboim-Said, criada em 2003 para realizar projetos na área de educação musical com israelenses e palestinos. O próprio Yoram Kaniuk, autor da frase que abre a coluna, escreveu com seu amigo Emil Habibi, palestino de Haifa, Terra das duas promessas, um conjunto de artigos com memórias de um tempo em que crianças israelenses e palestinas frequentavam as mesmas escolas.

Da mesma forma, não é por acaso que a questão palestina, coração do conflito árabe-israelense, vem sendo intensamente estudada por historiadores e sociólogos. Os representantes da mais recente historiografia israelense, autodenominados “novos historiadores”, desconfiando das narrativas históricas autolaudatórias e nacionalistas de seus antecessores, enfatizam a responsabilidade de Israel no êxodo dos refugiados palestinos.

É o caso, por exemplo, de Benny Morris, professor de História do Oriente Médio na Universidade de Ben-Gurion, em Israel, e de Ilan Pappé, atualmente professor do Departamento de História da Universidade de Exeter, na Inglaterra (até 2007, Pappé era professor na Universidade de Haifa, em Israel).

Mesmo que, atualmente, Pappé e Morris não partilhem as mesmas opiniões políticas – Morris mudou sua visão da questão palestina depois da recusa de Arafat em aceitar a proposta de paz pelo presidente norte-americano Bill Clinton em 2000 –, é indubitável a importância de suas contribuições para a formulação de novas interpretações sobre 1948, muitas das quais realizadas no âmbito das universidades israelenses.

É de Pappé, aliás, a iniciativa de organizar o volume Israel / Palestine Question (Routledge, 1999), ainda quando professor em Haifa, com ensaios principalmente de historiadores palestinos sobre o período anterior à chegada dos imigrantes judeus europeus.

O importante a marcar aqui é que boa parte da crítica às ações do governo israelense, tanto há 60 anos quanto agora, vem da própria sociedade israelense, que, como todas as sociedades, nada tem de homogênea. Por isso mesmo, é difícil justificar o movimento de boicote às universidades israelenses ocorrido entre 2002 e 2005, que tinha como propósito isolar Israel e forçar seu governo a mudar sua política em relação aos palestinos, da mesma forma como é impossível aceitar o ataque israelense, ocorrido há pouco, à Universidade Islâmica de Gaza.

Como bem disse Sari Nusseibeh, presidente da Universidade de Al-Quds, a universidade árabe de Jerusalém, “se formos olhar para a sociedade israelense, é na comunidade acadêmica que encontraremos as mais progressivas visões favoráveis à paz”. Tempos de guerra são sempre um incentivo ao crescimento dos dogmatismos. Divulgar as iniciativas para superá-los realizadas por quem está diretamente envolvido com a guerra talvez seja uma boa forma de contribuir para sua erradicação. 


Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
09/01/2009