Pensamentos sem rumo

A escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941) perdida em divagações.

Você chega do trabalho ou da faculdade, instala-se numa poltrona com um copo de uísque ou refrigerante para relaxar, põe um CD para tocar uma música suave, e daqui a pouco seus pensamentos vagueiam sem rumo, abordando ora uma coisa, ora outra. Você não presta mais atenção à música ambiente, nem a qualquer idéia objetiva específica. No entanto, sua mente flutua livremente: surgem idéias novas, imaginações e fantasias, lembranças do passado e aspirações sobre o futuro. O pensamento transcorre sem rumo. Você divaga.

As divagações são uma forma de pensamento muito criativa e livre, talvez relacionada com o que os filósofos chamam às vezes de “pensamento nômade”. O que acontece em nosso cérebro quando divagamos, quando pensamos sem um objetivo cognitivo explícito? Haveria áreas cerebrais específicas destinadas a essa função? A divagação é de fato uma função cerebral, ou uma “falta de função”?

Os neurocientistas têm se debruçado sobre esse problema com grande dificuldade. Primeiro, é difícil definir com precisão o que é o pensamento divagante, e saber quando ele ocorre. Além disso, não há certeza objetiva de que um indivíduo esteja de fato divagando, porque isso depende de seu próprio relato. Por isso mesmo, não há nesse caso como dispor de modelos animais. Como fazer?

O ponto de partida tem sido um conjunto de regiões cerebrais denominado “sistema basal default ”, por analogia com o termo usado pelos programadores de computador para se referir a uma seqüência básica de algum programa, sobre a qual se colocam as instruções de cada usuário. O envolvimento do sistema basal default com a divagação foi revelado ao se descobrir que essas tais regiões aumentam de atividade justamente quando o indivíduo cessa alguma tarefa cognitiva focalizada em uma meta.

A coisa funciona assim: estamos resolvendo um problema de matemática e, ao final, fechamos o caderno e ficamos um tempo “em repouso”, sem pensar em nada específico. Nesse momento aparentemente vazio, tornam-se ativas várias regiões do cérebro situadas no plano mediano, isto é, no plano de cada hemisfério cerebral que faz face com o hemisfério oposto. O que estarão fazendo?

O cérebro divagante
Recentemente, algumas tentativas foram feitas para verificar se o sistema basal default estaria relacionado com os pensamentos divagantes. Um grupo de pesquisadores do Dartmouth College, nos EUA, tentou um experimento bastante interessante liderado pela psicóloga Malia Mason. Eles reuniram 19 voluntários que eram então solicitados a aprender uma tarefa simples de natureza verbal.

O sistema basal default é constituído por regiões situadas no plano mediano dos hemisférios cerebrais, em ambos os lados. São as áreas marcadas em amarelo no exame de ressonância acima, mostradas no plano mediano como se vê na imagem de baixo. A letra B indica que a ativação é bilateral. Foto de cima modificada de Mason e cols. (2007) Science 315: 393-395.

Primeiro os participantes fixavam o olhar em um ponto de uma tela de computador, na qual depois apareciam fugazmente letras dispostas numa certa ordem. Deviam lembrar-se da ordem das letras, para logo depois responderem sobre a posição de cada letra, e voltar a fixar o ponto central da tela. Isso ocorria durante três dias. No quarto dia, os participantes eram solicitados a responder, no meio da tarefa, se haviam tido algum pensamento irrelevante, não relacionado à tarefa de memorização verbal que haviam aprendido. Além disso, nesse mesmo dia eles eram expostos a uma outra tarefa do mesmo tipo, inteiramente nova. Finalmente, no quinto dia os voluntários realizavam o mesmo experimento dentro de uma máquina de ressonância magnética funcional, capaz de revelar quais áreas cerebrais estavam mais ativas.

A pesquisa revelou que sim, o sistema basal default estava mais ativo durante os momentos de fixação do olhar no ponto da tela que aparecia antes e depois do experimento. Além disso, as mesmas regiões apareciam mais ativas durante a realização das tarefas já aprendidas do que durante a tarefa nova do quarto dia. E mais, os participantes relataram a ocorrência de mais divagações mentais durante as tarefas aprendidas do que durante a tarefa nova, como se não mais fosse necessário prestar atenção a elas, e o pensamento ficasse mais livre.

Os pesquisadores interpretaram os resultados atribuindo ao sistema default a função de prover a base neural para a ocorrência de pensamentos livres, desconectados de qualquer objetivo cognitivo – as divagações. E até especularam que as divagações teriam a “utilidade” mental de fornecer-nos uma conexão entre o passado, o presente e o futuro, algo que os pensamentos orientados para alguma tarefa não conseguem fazer.

Interpretação contestada
Mas nem tudo são flores em ciência. Imediatamente, no mesmo número da revista Science no qual o trabalho do grupo de Malia Mason foi publicado há alguns meses, apareceu uma contestação com todas as pedras na mão. Outro grupo importante de pesquisa, do University College em Londres, envolvendo pesos-pesados da área como Paul Burgess e Chris Frith, criticou a interpretação de Mason e seus colaboradores.

Esses autores argumentaram que o experimento era fundamentado no relato subjetivo dos participantes, e que durante a fixação do olhar à espera da tarefa, uma maior atividade do sistema basal default poderia bem dever-se a uma elevação do grau de alerta e atenção que seriam necessários quando a tarefa fosse iniciada.

Como ficamos, então? Obviamente, a questão está longe de ser resolvida. O indício da maior atividade do sistema basal default durante as divagações é importante e certamente será perseguido nos futuros trabalhos. Talvez seja o caso de analisar pacientes com lesões cerebrais nessas regiões: será que se queixam de “cabeça vazia”?

Outra pergunta fica no ar: para que servem as divagações – terão algum valor adaptativo para a sobrevivência da espécie humana? Terão relação com a imaginação e com a criatividade, como querem os filósofos que defendem o conceito de pensamento nômade? De qualquer modo, divagar é um prazer. E como disse o bioquímico norte-americano Linus Pauling (1901-1994): “a melhor maneira de ter uma boa idéia é ter muitas idéias…”

Nota: Agradeço a Moises Sznifer por ter-me chamado a atenção para este tema intrigante.   

SUGESTÕES PARA LEITURA
M.F. Mason e colaboradores (2007) The default network and stimulus-independent thought. Science , vol. 315, pp. 393-395.
S.J. Gilbert e colaboradores (2007) Comments on “Wandering minds”. Science , vol. 315, p. 43b.

Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
31/08/2007