No cotidiano, deparamo-nos frequentemente com escolhas e decisões a tomar, com maior ou menor urgência e importância. Em quem devo votar? Que filme verei hoje? Que curso escolherei para o vestibular? Qual a resposta certa para a pergunta da prova?
Acabamos decidindo alguma coisa, mas… Será que fizemos certo? Nesse processo, durante e após a tomada de decisão, refletimos sobre nosso próprio pensamento e avaliamos as nossas escolhas.
Pensamos sobre o nosso próprio pensamento: esta é uma propriedade da mente humana que os neurocientistas chamam de metacognição.
Podemos ilustrar esse processo com um teste simples. Se pedirmos ao distinto público que aponte, dentre as sequências de segmentos abaixo, a que lhe pareça ter a maior precisão de foco, não haverá muita dificuldade. Pelo menos, rapidamente você escolherá uma delas sem maiores problemas.
O difícil é se, depois da sua resposta, alguém lhe perguntar que grau de certeza você tem sobre a escolha que fez. Você diria que tem 100% de certeza de que acertou?
Bem, se isso for parte de um experimento psicofísico para a identificação de contrastes, a primeira conclusão é que cada um tem uma sensibilidade visual diferente, e, portanto, fará sua escolha de acordo com essa característica sensorial que lhe é peculiar. A certeza (ou incerteza) do acerto variaria com o sistema visual de cada um. Portanto, para investigar a incerteza decisória, é preciso eliminar a incerteza sensorial.
Para esse fim, o experimentador pode regular a dificuldade do teste manipulando os segmentos contrastantes (conhecidos como linhas de Gábor). Isso é possível, já que eles são gerados por funções matemáticas senoidais conhecidas. Dependendo dos parâmetros utilizados, as linhas podem ter diferentes contrastes, construídos ao bel-prazer do experimentador.
A vantagem desse procedimento é que se torna possível manipular as linhas apresentadas a cada sujeito, de maneira que todos tenham a mesma chance de acertar: por exemplo, 70% de respostas corretas. Assim, todos estarão em igualdade de condições, de acordo com a individualidade do seu sistema visual.
Decisões e autoconfiança
Agora, já que a percentagem de acertos sobre o contraste das linhas de Gábor se tornou constante para todos os observadores (confira os triângulos azuis no gráfico acima), pode-se testar o grau de certeza de cada um sobre a sua escolha (os losangos vermelhos do gráfico), independente da sensibilidade visual individual.
Esse experimento foi feito recentemente por um grupo de pesquisadores liderado por Stephen Fleming, do University College London, na Inglaterra. O resultado, publicado este mês na Science, foi interessante, talvez bem conhecido dos psicólogos: alguns demonstraram muitas dúvidas sobre sua escolha, enquanto outros tinham absoluta certeza da mesma. A autoconfiança variou de 0 a 100% entre os indivíduos!
Autoconfiança tem a ver com a personalidade de cada um, e também com a capacidade de refletir sobre seus atos e analisar seus próprios pensamentos: reflete a tal metacognição que mencionamos acima. De fato, testando várias vezes os mesmos sujeitos, o grupo de pesquisadores constatou que a autoconfiança individual era bastante consistente – uma verdadeira ‘marca de personalidade’.
Stephen Fleming e seus colaboradores chegaram àquela conclusão famosa: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Ou seja: muitas de nossas decisões do dia a dia são tomadas sem que tenhamos grande certeza de que agimos certo. O desempenho comportamental é uma coisa, a autoconfiança sobre ele é outra!
A frenologia moderna
O grupo do University College London não ficou nisso. Perguntou-se se seria possível identificar as regiões cerebrais envolvidas com a metacognição. Trata-se de um empreendimento audacioso, que remonta aos frenologistas do século 18, a cuja história vale referir.
Nessa época remota, o cérebro estava começando a vencer a disputa com o coração pelo direito de ‘sediar a alma’, ou seja, como o ‘locus’ estrutural das propriedades cognitivas e afetivas que todos possuímos. Especulava-se muito, no entanto, dada a falta de técnicas capazes de dar base científica ao problema.
Na época, destacou-se nesse campo o médico alemão Franz Joseph Gall (1758-1828). Gall defendia que as capacidades mentais se localizavam em regiões específicas do cérebro.
Durante a vida do indivíduo, acreditava, algumas regiões se desenvolviam mais que outras, e acabavam por imprimir uma marca no crânio, identificável externamente por medidas craniométricas. A tese ficou conhecida como frenologia (do grego phrenos, mente; e logos, estudo).
Gall atirou no que viu, e acertou o que não viu. As funções que atribuía ao cérebro eram completamente especulativas, e a possibilidade de prever a nossa personalidade analisando as protuberâncias de nosso crânio não se confirmou. Para se ter uma ideia, a frenologia listava como funções mentais as seguintes: idealismo, espírito de imitação, combatividade, autoestima, destrutividade, e, até mesmo… republicanismo!
Apesar desse aspecto especulativo, o conceito de localização cerebral das capacidades cognitivas mostrou-se correto até hoje, confirmado pelos estudos com neuroimagem por ressonância magnética. Esses estudos partem da tese correta de Gall, segunda a qual as funções mentais são localizadas no cérebro, se não em regiões únicas restritas, certamente em redes neurais articuladas e conectadas funcionalmente.
As funções atribuídas ao cérebro no século 19, apesar de sua falta de base científica, estão de certa forma sendo resgatadas pelos experimentos controlados de hoje. Não soa ‘frenológico’ dizer que a autoconfiança possa estar localizada em uma certa região cerebral?
A localização cerebral da autoconfiança
Foi daí que partiram Fleming e seus colaboradores. Definiram quantitativamente a autoconfiança, que passaram a considerar uma expressão da metacognição – a capacidade introspectiva de avaliarmos mentalmente a certeza das nossas decisões e ações.
Cada sujeito, portanto, adquiriu uma medida numérica do seu grau de autoconfiança, expressa nas proporções que estão representadas no gráfico como losangos vermelhos.
Os mesmos sujeitos eram então levados a um exame de ressonância magnética capaz de medir o volume das diferentes áreas do cérebro (que presumivelmente reflete o número de neurônios) de cada um.
E, finalmente, um estudo de correlação estatística era realizado para comparar o grau de autoconfiança de cada indivíduo com o volume das áreas cerebrais.
O resultado foi uma correlação positiva do volume do córtex pré-frontal anterior, principalmente no hemisfério direito (as áreas identificadas com cores quentes na imagem), com a autoconfiança dos sujeitos. Aqueles com alto grau de autoconfiança apresentavam maior volume cerebral nessa região, e os inseguros exibiam menor volume.
É preciso exercer uma certa cautela ao interpretar resultados de correlação. Duas medidas podem estar correlacionadas, sem que necessariamente uma seja a causa da outra. No entanto, como as regiões apontadas no estudo são às vezes atingidas por lesões, e esses pacientes exibem sintomas depressivos com baixa autoestima, é inescapável a hipótese de que, neste caso, a presunção de causa-efeito possa ser verdadeira.
Além disso, não deixa de ser curioso que estejamos, em pleno século 21, a comprovar, por meios científicos controlados, que a especulação desenfreada dos frenologistas talvez não tenha sido tão absurda assim…
H.S. Terrace e L.H. Son (2009) Comparative metacognition. Current Opinion in Neurobiology, vol. 19, pp. 67-74.
S. Fleming e colaboradores (2010) Relating introspective accuracy to individual differences in brain structure. Science, vol. 329: pp. 1541-1543.
Roberto Lent
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro