Pequenos hunos

Cruéis guerreiros dispostos a invadir e a saquear recursos, deixando para trás um rastro de destruição. Soldados hostis cuja vida é basicamente destinada a multiplicar seu contingente, em uma tentativa constante de invadir e dominar. Combatentes diminutos que, apesar de serem eliminados aos milhões, conseguem se adaptar aos campos de batalha mais inóspitos. Assim eram vistos os organismos estudados pelo ramo das ciências da vida conhecido como microbiologia.

Obviamente, esse campo não se dedica ao estudo dos hunos – povos bárbaros da Ásia central que, sob a chefia de Átila, invadiram a Europa em meados do século 5, causando incontáveis tormentos e prejuízos. Mas é assim que o objeto de estudo dessa disciplina – os microrganismos – foi encarado por muito tempo. Contudo, essa visão tem se modificado bastante recentemente.

A bactéria Escherichia coli é uma das integrantes mais comuns da nossa flora intestinal (foto: NIAID).

Apesar de sua aparente simplicidade estrutural, os microrganismos que habitam nosso planeta têm alcançado um imenso sucesso evolutivo. Esse êxito pode ser comprovado pela antigüidade dessas criaturas surgidas há milhões de anos e por sua adaptação aos mais diversos ambientes terrestres. Desse modo, para os microrganismos, o corpo humano é apenas mais um local a ser ocupado e colonizado. Bactérias e fungos persistem nas mais diversas partes de nosso corpo e, inclusive, excedem em número as nossas células.

As comunidades de microrganismos que habitam as diferentes regiões de nosso organismo apresentam características e composição específicas, estando adaptadas às necessidades de cada microambiente. Apenas algumas áreas de nosso corpo, como o sistema nervoso central, os pulmões e o sangue, permanecem – em condições normais – livres dessa invasão.

A idéia de que esses seres invadiam o nosso corpo apenas para usufruir de recursos e proteção, causando problemas de saúde, tem se mostrado incorreta e restrita. A ciência tem mostrado que esses microrganismos são essenciais para uma série de atividades fisiológicas normais de nosso organismo, como a absorção de vitaminas no intestino grosso e a eliminação de bactérias patogênicas na pele. Por isso, essas comunidades de microrganismos são consideradas integrantes de nossa “flora microbiana”, um grupo de seres que tem conosco uma parceria ecológica e que desempenha funções essenciais para nossa fisiologia.

Relação harmônica
Essas relações ecológicas estabelecidas ao longo de milhões de anos de evolução geram benefícios mútuos para seus participantes: seres humanos e microrganismos. Contudo, somente a vigilância constante de nosso sistema imune, que mantém o número desses microrganismos dentro de certos limites, permite o sucesso dessa relação mutualística harmônica.

Atualmente sabe-se que muitas das doenças humanas são causadas pela incapacidade de nosso organismo para exercer um controle eficiente de nossa flora bacteriana que, ao alcançar uma densidade populacional maior, pode deixar de nos beneficiar e começar a causar doenças. Outras doenças são ocasionadas pela eliminação ou perturbação de flora bacteriana, que abre espaço para a proliferação de microrganismos patogênicos.

O fungo Candida albicans é encontrado no intestino de cerca de 80% da população. Inócuo em condições normais, ele pode desencadear a candidíase caso sua população cresça muito. Essa é uma das infecções oportunistas mais freqüentes em pacientes com Aids (foto: Wikimedia Commons).

A exclusão competitiva de bactérias e fungos patogênicos pelas espécies de nossa flora microbiana corriqueira evita, em condições normais, que contraiamos doenças. As espécies de microrganismos travam, portanto, uma dura batalha pelo domínio do espaço e dos recursos do ambiente – no caso, nosso organismo.

A supressão ou alteração na composição da flora microbiana abre as portas para que microrganismos oportunistas, antes mantidos em níveis inócuos para o nosso organismo, possam proliferar e causar moléstias. Esse problema mostra-se mais sério em pacientes imunologicamente deprimidos como nos casos de infecção por HIV/Aids, radioterapia e quimioterapia para tratamento de câncer.

Assim, o ser humano hospeda e carrega junto de si uma série imensa de criaturas cuja presença é essencial para sua vida. Existe, portanto, um equilíbrio delicado entre a saúde e a doença, que depende de atores cuja participação nesses processos não é imediatamente compreendida após considerações iniciais. Além disso, a microbiologia atual é uma disciplina que, para ser completa, deve se aliar com a ecologia e a evolução.

Crescei e multiplicai-vos
A simplicidade celular das bactérias e seu genoma enxuto, em comparação com o dos eucariotas, podem não nos deixar entrever a eficiência desses componentes de nossa flora microbiana como organismos voltados quase que unicamente para se multiplicar.

A multiplicação e a conseqüente disseminação de seus genes é o objetivo primordial dos microrganismos. Por isso, uma única bactéria pode se converter em poucas horas em uma população com mais de um milhão de indivíduos, desde que as condições sejam propícias. Deve ser lembrado ainda que esses indivíduos não são simples cópias clonadas da bactéria inicial, pois o genoma desses organismos tolera a ocorrência de um numero maior de mutações que geram variabilidade genética e, assim, uma possibilidade de fazer frente a condições ambientais diferentes.

Os cientistas que estudam as relações entre os organismos habitantes de nosso corpo – microrganismos e parasitas – afirmam que a relação entre nós, os hospedeiros, e esses invasores evoluiu de uma forma inicialmente agressiva e de conseqüências ruins para os hospedeiros, para uma fase em que o invasor passa a causar efeitos discretos. É o que ocorre, por exemplo, com o Trypanosoma cruzi, protozoário ciliado causador da doença de Chagas, e animais como os tatus e gambás, que são seus reservatórios naturais. A convivência estabelecida durante milhões de anos entre esses organismos faz com que o parasita cause poucos ou mesmo nenhum dano a esses animais silvestres.

Em uma etapa seguinte, o processo evolutivo pode permitir que sejam selecionados grupos de invasores que proporcionem de alguma forma vantagens para seus hospedeiros. Um exemplo disso é o caso de bactérias comensalistas como algumas espécies de Staphylococcus, que se alimentam de restos de pele ou do excesso de secreções sebáceas. Em ecologia, chamamos essas relações de mutualísticas, pois ambos os parceiros ganham com a interação, embora possam viver independentemente.

Posteriormente, esses organismos podem desenvolver uma interação maior e se tornarem até mesmo incapazes de viver isoladamente. O exemplo mais marcante dessa associação entre dois seres conhecida como simbiose talvez seja o da união entre as células eucariotas e as mitocôndrias e plastídios (organelas das células vegetais correspondentes às mitocôndrias das células animais).

Bactérias ‘convertidas’ em organelas

Mitocôndria observada ao microscópio eletrônico. Acredita-se que essa organela, responsável pela respiração celular nas células de animais, tenha surgido nas células de eucariotas devido à incorporação de uma bactéria (foto: NIH).

Testes bioquímicos e filogenéticos indicam que os plastídios são provavelmente parentes das atuais cianobactérias. Acredita-se que formas primitivas dessas bactérias foram englobadas por tipos celulares maiores e, com isso, proporcionaram a essas células a possibilidade de converter os fótons solares em energia química na forma de glicose, gerando um suprimento energético essencial para a evolução desses eucariotos.

Especula-se que as mitocôndrias seriam inicialmente aparentadas com as atuais riquétsias, um grupo de bactérias patogênicas encontradas em carrapatos, piolhos, pulgas e ácaros e relacionadas com doenças como a febre maculosa e o tifo endêmico. As riquétsias são, devido a sua simplicidade estrutural e a seu tamanho reduzido, capazes de sobreviver e se reproduzir apenas no interior de células eucarióticas. Análises recentes do genoma da Rickettsia prowaseckii, causadora do tifo endêmico, confirmaram seu parentesco genético com as mitocôndrias.

As mitocôndrias tornaram suas células hospedeiras capazes de empregar de forma eficiente a energia química presente nas moléculas de glicose. Surgia assim, o processo de respiração celular, um mecanismo de conversão energética cuja eficiência é mais de dez vezes superior à dos processos fermentativos.

Essa evolução não afeta, portanto, apenas os microrganismos, mas também seus hospedeiros. Na verdade, é um processo mútuo cujas mudanças em um organismo levam a modificações no outro. Por isso, é melhor denominarmos esse mecanismo de evolução conjunta ou coevolução. Esse fenômeno torna os seres dependentes, de forma que os invasores e seus hospedeiros são exclusivos e dificilmente podem se separar. Por isso, a extinção dos hospedeiros resulta quase invariavelmente no desaparecimento de seus parasitas e microrganismos específicos.

Dessa forma, um processo inicialmente causador de conseqüências nefastas para os hospedeiros – e, portanto, para os parasitas – pode se transformar em uma relação benéfica e mesmo essencial para a sobrevivência dos seus participantes. Assim, esses microrganismos estão longe de serem bárbaros selvagens e, em muitos casos, estão mais próximos de serem nossos benfeitores.

Jerry Carvalho Borges
Colunista da CH On-line 
07/12/2007

SUGESTÕES PARA LEITURA
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