A última coluna, ‘O veneno nosso de cada dia’, mostrava meu espanto com o descompasso entre o consumo de pesticidas no Brasil e a modesta posição do país no ranking da produção agrícola global. Embora não trouxesse nenhum fato novo, provocou acaloradas reações, negativas e positivas.
Já que o tema suscita o interesse de alguns, abordarei este mês o mesmo assunto por um ângulo que pode interessar a todos: a saúde. A saúde pública, urbana, rural, brasileira e global.
Comecei com uma busca na Web of knowledge, base de indexação de dados que reúne milhões de trabalhos científicos sobre os temas mais variados, publicados em revistas com comitê de leitura e avaliação pelos pares, a chamada peer-review. Usei os termos de busca ‘pesticidas’ e ‘saúde’. Apareceram 5.349 trabalhos, dos mais recentes aos do século passado. Acrescentando o termo ‘Brasil’, retornaram apenas 76.
Percorri os títulos (e resumos, quando disponíveis) dos 100 primeiros trabalhos da busca inicial, e de todos os 76 da busca que incluía o termo ‘Brasil’. Também explorei os sites da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde, incluindo o do Sistema Nacional de Informações Tóxico-farmacológicas (Sinitox).
Destaco aqui alguns exemplos concretos do impacto negativo do uso de pesticidas sobre a saúde. Começo pelo eldorado, a Califórnia (Estados Unidos), onde foi realizado o trabalho de Maddy, Edmiston e Richmond, publicado em 1990 na Reviews of Environmental Contamination & Toxicology com o título ‘Ilnesses, injuries and deaths due to exposure to pesticides in California, 1949-1988’.
Pinço do resumo que, em 1987, os centros de atendimento a intoxicações do estado receberam cerca de 17 mil incidentes de exposição humana a pesticidas, quase todos não ocupacionais (ou seja, não envolviam agricultores que usavam esses compostos). Destes, entre 30% e 60% levaram ao desenvolvimento de sinais ou sintomas. Segundo os autores, nos 10 anos anteriores, a média de mortes ligadas ao trabalho com pesticidas era de uma por ano e a de suicídios via uso desses compostos era de 15 por ano.
Em outro estudo norte-americano, intitulado ‘Cancer incidence in the Agricultural Health Study’, publicado em 2005 no Scandinavian Journal of Work, Environment & Health, Alavanja e colaboradores relatam que, embora a taxa de câncer em geral no período pesquisado fosse mais baixa entre os trabalhadores agrícolas do que na média da população, certos tipos de câncer tinham frequências significativamente mais elevadas na população rural. Agricultores e aplicadores comerciais de pesticidas tinham mais câncer de próstata, suas esposas apresentavam maior frequência de melanomas e mulheres que aplicavam pesticidas desenvolviam mais câncer de ovário.
O estudo envolve cerca de 89 mil trabalhadores que usam pesticidas nos Estados Unidos e suas esposas, e a publicação citada é apenas uma das muitas já produzidas.
Outra pesquisa do mesmo projeto, publicada em 1998 no American Journal of Industrial Medicine com o título ‘Exposure opportunities of families of farmer pesticide applicators’, descreve as vias de exposição a pesticidas por parte dos familiares dos aplicadores. Destes, 21% moram a menos de 50 jardas (cerca de 46 metros) do local de preparação dos pesticidas, 27% guardam os pesticidas em casa, onde as roupas contaminadas são lavadas na mesma máquina que as demais. Quase metade das esposas declarou trabalhar nos campos, 40% se envolvem na mistura ou aplicação de pesticidas e mais da metade das crianças de 11 anos ou mais realizam atividades que as colocam em contato potencial com os pesticidas. O projeto, que segue em curso, envolve as principais instituições oficiais norte-americanas de saúde.
Cenário global desanimador
Por que dei ênfase, até aqui, a estudos nos Estados Unidos? Porque se existe algo parecido com uso adequado ou seguro de pesticidas, a agricultura norte-americana deveria ser a primeira a demonstrá-lo, devido à farta infraestrutura e ao alto nível educacional do país, entre outros fatores.
Mas os padrões que já emergem dos poucos dados dos estudos citados acima se repetem, com impressionante regularidade – e geralmente para pior –, em todo o globo, particularmente nos países menos desenvolvidos. Nestes últimos, tudo pode dar mais errado ainda, pela falta de assistência técnica, regulamentação e fiscalização, pela população de baixa alfabetização, pela maior frequência de trabalho infantil, e muitos et cetera.
No Brasil, segundo dados do censo do IBGE de 2006, havia 5,2 milhões de estabelecimentos agropecuários no país, instalados em uma área correspondente a 36,75% do território nacional. Eles dão ocupação para mais de 16 milhões de pessoas, ou quase 20% da população ativa do país, dos quais 80% têm baixa escolaridade.
Ainda segundo o IBGE, há mais de 1 milhão de crianças com menos de 14 anos trabalhando na agropecuária, e quase 12 milhões dos trabalhadores são temporários, o que dificulta a capacitação e o acúmulo de experiência profissional. Mais da metade dos estabelecimentos onde houve utilização de agrotóxicos não recebeu orientação técnica, o que não é surpresa diante do quadro exposto.
Falamos um pouco de Estados Unidos e Brasil, mas o quadro global é desanimador. Documentos no site da OMS, como o The world health report 2003 – shaping the future, reportam uma incidência de 3 milhões de casos anuais de envenenamento agudo e severo por pesticidas, que resultam em cerca de 355 mil mortes, dois terços das quais em países em desenvolvimento. Dois terços do total são suicídios. Esses números são subestimados, pois se referem basicamente aos casos severos que acabam em hospitalização. Por outro lado, provavelmente superestimam a proporção de suicídios.
Esses dados resumem resultados e estimativas de vários estudos disponíveis no site da OMS, entre eles: ‘Pesticide use in developing countries’, ‘Pesticides hazards in developing countries’ (publicado por Koh e Jeyaratnam em 1996 na Science of the Total Environment), ‘An epidemic of pesticide poisoning in Nicaragua: implications for prevention in developing countries’ e Toxics and poverty: the impact of toxic substances on the poor in developing countries (escrito por Goldman e Tran e publicado pelo Banco Mundial em 2002).
Envenenamento crônico
As intoxicações e o uso de pesticidas em suicídios (e homicídios) bem-sucedidos provam que essas substâncias podem ser terríveis – e não só contra os insetos. Naturalmente, os pesticidas não foram formulados para serem ingeridos por humanos, e sim borrifados em solos, plantas e pragas. O que acontece então com aqueles, que mesmo evitando a intoxicação aguda, se expõem de forma crônica aos pesticidas?
Nada de muito bom, pois, ainda segundo o site da OMS, podem sofrer aumento na frequência de problemas reprodutivos e de desenvolvimento, perturbação dos sistemas endócrino, imunológico e nervoso e desenvolver alguns tipos de câncer. Essas informações encontram respaldo nos seguintes documentos: Human development report – consumption for human development, Public health impact of pesticides used in agriculture, ‘Overview of human health and chemical mixtures: problems facing developing countries’ e Childhood pesticide poisoning: information for advocacy and action.
Para estar cronicamente exposto a pesticidas no campo não é preciso ser trabalhador agrícola. Basta ser vizinho de uma área regularmente tratada, e vento e descaso cuidarão do resto.
Um estudo bem recente, publicado por Lee e colaboradores na Environmental Health Perspectives com o título ‘Acute Pesticide Illnesses Associated with Off-Target Pesticide Drift from Agricultural Applications: 11 States, 1998-2006’, identificou 2.945 casos de intoxicação aguda associada à deriva de pesticidas de uso agrícola em 11 estados norte-americanos. Em 53% dos casos, a exposição não foi ocupacional. Fumigação de solos (45%) e aplicação aérea (24%) foram os principais responsáveis pelas intoxicações. Segundo a pesquisa, 97% das vítimas tiveram doenças de baixa severidade e 14% eram crianças.
E nas cidades, como estamos? Bem, aqui escapamos da aplicação aérea, mas não dos resíduos de pesticidas em alimentos e água. A nossa exposição começa dentro do útero materno, e dessa é difícil escapar.
Em estudo com 404 mães de população urbana multiétnica nos Estados Unidos publicado em 2011 na Environmental Health Perspectives, Engel e colaboradores mediram os níveis maternos de pesticidas organofosforados durante a gravidez e avaliaram o desenvolvimento cognitivo dos filhos um, dois e de seis a nove anos após o parto. A pesquisa, intitulada ‘Prenatal Exposure to Organophosphates, Paraoxonase 1, and Cognitive Development in Childhood’, concluiu que o desenvolvimento cognitivo estava negativamente associado aos níveis pré-natais desses compostos.
De volta ao Brasil, destaco o estudo de Meyer e colegas, da Fiocruz, UFRJ e Uerj, intitulado ‘Mood Disorders Hospitalizations, Suicide Attempts, and Suicide Mortality Among Agricultural Workers and Residents in an Area With Intensive Use of Pesticides in Brazil’ e publicado no Journal of Toxicology and Environmental Health. Os autores compararam a taxa de mortalidade por suicídios em trabalhadores agrícolas de uma área de uso intensivo de pesticidas no Rio de Janeiro com aquela de três populações de referência no mesmo estado.
O grupo também comparou as taxas de hospitalização atribuídas a tentativa de suicídio e distúrbios de humor como depressão em residentes da mesma área agrícola e em duas populações de referência. Em ambos os casos, as taxas eram mais altas na população agrícola. O risco de morte por suicídio era também mais alto nas áreas com maior gasto per capita com pesticidas.
Poderíamos seguir assim, mas a coluna já está longa. E ficou no ar a pergunta mais importante: se os pesticidas são ótimos porque aumentam a produtividade e péssimos porque têm múltiplos efeitos negativos na saúde, qual é a relação custo/benefício de seu uso intensivo?
Há alguns estudos sobre isso, e um deles é brasileiro (‘Estimating the social cost of pesticide use: An assessment from acute poisoning in Brazil’), feito por Soares e Porto e publicado no periódico Ecological Economics. Desenvolvido em áreas de plantio de milho no Paraná, o estudo estimou que os custos apenas com as intoxicações agudas por pesticidas podem consumir de 8% a 64% dos lucros com a atividade.
E com isso o agricultor tem mais um motivo para a depressão. Que círculo vicioso…
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro