Até pouco tempo atrás, geologicamente falando, os humanos eram caçadores-coletores. Deslocavam-se em busca de alimento, efetuando longas migrações e enfrentando períodos de escassez. Era certamente penoso, mas era sustentável. Há cerca de 10.000 anos, porém, inventamos a agricultura e, com isso, nos sedentarizamos. Passamos o produzir mais comida do que o estritamente necessário e, com esse novo poder, criamos impérios.
A agricultura se originou no chamado Crescente Fértil, uma área no atual Oriente Médio em forma de lua crescente, como o nome sugere. Eram os jardins do Éden, com fontes murmurantes, frescos bosques, pássaros mil, como conta a lenda. Lenda? Não, a região era mesmo algo bem parecido com isso, um bom lugar para se viver.
Começamos plantando em pradarias ou várzeas. As safras eram regulares e boas. Também, pudera: eram áreas planas, natural e regularmente fertilizadas por cheias do rio, ou cinzas de vulcão, ou nutrientes oriundos da rocha sob o solo arado.
Deu tão certo que resolvemos ampliar os cultivos, desmatando áreas planas, e depois outras menos planas, inaugurando um ciclo sinistro que transformou o jardim do Éden em deserto, paisagem atualmente predominante na maior parte do tal Crescente Fértil: desmatamento, agricultura, erosão, desertificação.
Tudo bem, no caso do Crescente Fértil, levou 10 mil anos, então até lá a gente inventa alguma coisa para sair dessa. Afinal, estamos nesse continente aqui há menos tempo que isso. Agora somos mais rápidos e eficientes – inclusive para cavar abismos a nossos pés.
A ecologia de segundo grau nos ensina que os ecossistemas evoluem e amadurecem, e que ecossistemas jovens, em ambientes instáveis (afetados por perturbações periódicas como marés, enchentes, fogo), são robustos, pouco diversos, pouco eficientes e também muito instáveis. Num ecossistema assim, uma espécie pode ter num ano uma biomassa altíssima, e, no seguinte, uma mixaria.
Se estivermos falando de samambaias, você não vai perder o sono por isso. Mas se a espécie em questão for a base de sua alimentação, essas flutuações aleatórias podem significar sobreviver ao próximo inverno, ou não.
Forjando a estabilidade
Este é o drama da agricultura. Ela explora essencialmente espécies de plantas adaptadas de ancestrais que viviam em pradarias, que são ecossistemas mantidos em juventude e instabilidade eterna por fatores naturais e cíclicos.
Estas espécies estavam, portanto, pré-adaptadas à exploração, e junto com sua produtividade e robustez veio sua instabilidade. Mas esta última não nos convém, obviamente, e resolvemos querer o melhor dos dois mundos: produtividade com estabilidade.
Para domar a instabilidade intrínseca de espécies tão interessantes como trigo, arroz, milho etc., inventamos primeiro os fertilizantes e, mais tarde, os pesticidas.
Arrá! Agora podemos explorar terras sem vocação para isso, porque pobres e/ou acidentadas, produzindo mais alimento e crescimento, incluindo o da erosão. Mas onde arrumar fertilizantes?
Os primeiros foram naturais: algas marinhas, esterco de animais domésticos. Depois descobrimos o guano, a grossa camada de excrementos de pássaros marinhos, acumulada ao longo de centenas de milhares de anos em áreas litorâneas e ilhas, em particular no Pacífico.
Este recurso então estratégico foi objeto de cobiça e conflitos geopolíticos ao longo do século 19, em que a Inglaterra teve papel predominante. Hoje, as ilhas que foram guaneiras estão peladas. O guano fóssil foi todo extraído e hoje só há guano relativamente fresco, geologicamente falando. Imagine só, aquele nobre cottage inglês que você fotografou nas suas férias na Europa não existiria se não fosse o cocô de pássaro. Mas, felizmente, o dinheiro não tem cheiro!
Assim, os fertilizantes deram um belo upgrade à agricultura. Mas persistiam uns problemas chatos: havia as ervas ‘daninhas’, que eram culpadas de terem coevoluído com nossas queridas espécies alimentares, e, pior ainda, os fungos, vermes, brocas e insetos em geral, que insistiam em infestar nossas preciosas plantações. Mas é obvio!
Coloque-se no lugar de um inseto, cujos antepassados sofreram horrores, mordendo ou sugando uma planta apetitosa aqui, uma outra ali, porque elas não seriam bobas de dar mole ficando todas juntinhas. De repente ele se depara com cinco quilômetros quadrados de uma planta só, justo a sua preferida, plantada em fileiras, e madurinha. O que vai fazer, passada a forte emoção? Ora, o mesmo que nós, crescer e multiplicar-se como nunca.
Contra estes competidores eficientes e ameaçadores, criamos os pesticidas, herbicidas, fungicidas, acaricidas, nematicidas e outros ‘idas’. É a ‘revolução verde’, triste slogan. Garantem-nos que esses produtos, que seus fabricantes preferem chamar de defensivos agrícolas, são terríveis contra os insetos e companhia, apenas. Há controvérsias.
Nada se perde: nem o pesticida
Aplicados nas lavouras com pulverizadores costais ou por tratores e aviões, os pesticidas se incorporam ao solo, à água superficial e subterrânea, aos alimentos produzidos, ao ar. Lembremos que o ciclo da matéria é fechado, ela só muda de estado e lugar: nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.
O DDT foi considerado uma droga milagrosa e liberalmente empregado na agricultura e até na higiene pessoal durante muitas décadas. Na minha infância ainda era usado para matar piolhos e polvilhado em colchões para matar pulgas. Hoje seu uso é proibido, exceto para controle de vetores em casos de emergência epidemiológica.
O motivo do banimento foi justamente uma de suas supostas qualidades: a persistência. Pouco e lentamente degradado, se acumula onde é usado e também onde não é. Outro motivo foi a sua intensa biomagnificação: é diluído no ambiente, mas concentrado ao longo da cadeia alimentar. Um dos seus numerosos efeitos na fauna é interferir no metabolismo do cálcio, fragilizando, por exemplo, os ovos das aves que assim se quebram sob o peso das diligentes chocadeiras.
E sem aves, a revolução verde inventou a Primavera silenciosa, título do clássico livro de Rachel Carson, publicado em 1962, que alertava para os perigos dos inseticidas organoclorados para o meio ambiente e a saúde humana. E décadas após sua proibição, ainda temos resíduos de DDT e seus produtos de degradação no nosso organismo, em particular em gorduras e, portanto, no leite materno. Isso em qualquer lugar do planeta, devido à volatilidade destes compostos.
O uso de organoclorados é hoje rigidamente controlado e a indústria desenvolveu novas classes de produtos de menor persistência e toxicidade, mas a Organização Mundial da Saúde e a Organização Internacional do Trabalho estimaram em 2005 a ocorrência de 70 mil óbitos provocados por agrotóxicos no mundo, a grande maioria em países em desenvolvimento.
Morte, intoxicação e bulas irreais
As mortes são relacionadas a exposições agudas, mas para cada morte ocorrem milhares de intoxicações. Entre os dois milhões de agricultores norte-americanos, a agência ambiental daquele país estima 10 mil a 20 mil diagnósticos anuais de intoxicações por agrotóxicos. E para cada intoxicação que de fato é diagnosticada, quantas não outras não ocorrerão?
Os National Institutes of Health americano coordenam desde 1994 um vasto estudo epidemiológico que concluiu que os trabalhadores rurais têm taxas superiores às médias nacionais para diversos tipos de câncer, como leucemia, mieloma, câncer de pele, lábio, estômago, próstata, cérebro, e também para problemas neurológicos e reprodutivos. Caramba, isso no país mais rico do mundo, onde os agricultores sabem ler bulas em inglês e podem comprar equipamento de proteção individual.
No Brasil, os produtos adquiridos legalmente (há ainda os que são reembalados e vendidos sem sequer o rótulo, os contrabandeados, os falsificados) são vendidos com bulas em português fartamente ilustradas. Então ficamos assim, se houver intoxicação, é porque o agricultor não seguiu as instruções: a vitima é a culpada.
A Fundação Oswaldo Cruz fez justamente um estudo sobre a forma como os agricultores interpretam as ilustrações que acompanham os agrotóxicos mais comuns e a conclusão é desastrosa: os agricultores não são burros, mas as ilustrações são péssimas. Varias delas inclusive sugerem o contrário do que pretendem expressar.
O nosso Censo Agropecuário mostra que apenas metade dos 1,4 milhão de estabelecimentos que fizeram uso de agrotóxicos em 1996 receberam orientação técnica. A maioria utilizava pulverizadores costais, responsáveis por 84% dos casos registrados de intoxicação. Ao usar este tipo de pulverizador, um quinto admitia não utilizar equipamentos de proteção e um terço, não utilizar roupas protetoras.
Se há formas ‘seguras’ ou ‘adequadas’ de manuseio destes produtos, por que são tão pouco utilizadas? Porque não são viáveis. Se quiser entender por quê, tente vestir-se de máscara, luvas, botas, roupa impermeável dos pés à cabeça e carregar uma mochila de 10 quilos morro acima e morro abaixo, sob sol e calor.
Por fatores econômicos, culturais, climáticos e topográficos, o ‘manuseio adequado’ dos pesticidas é simplesmente inviável no mundo real.
Por que insistir, então? Porque dá lucro: venderam-se no Brasil cerca de 800 mil toneladas de agrotóxicos em 2009, gerando um faturamento de US$ 8 bilhões. Com o crescimento do nosso agronegócio, somos hoje o maior mercado consumidor de agrotóxicos do mundo.
Maçã-conceito
Podemos produzir alimentos sem tanto veneno? Claro que sim, mas a agricultura industrial nos acostumou mal. Escolhemos frutas e legumes com os olhos, e produzir maçãs enormes, de pele lisa, brilhante e sem manchas de fato exige, entre outras coisas, o uso de pesticidas.
No Japão, são assim, vendidas por unidade, caríssimas. O problema é que elas não têm gosto de nada e sua polpa é farinhenta. Você paga caro não por uma fruta, mas por um conceito, uma imagem. E assim, além de linda e insípida, nossa dieta fica monótona.
A única banana que o mercado mundial conhece é aquela que nós conhecemos como banana d’água, que é a variedade mais fácil de cultivar, transportar, conservar. Tadinhos, não conhecem a banana ouro, a maçã, a prata, a da terra. Mas muitos brasileiros também não, já que algumas variedades só se acham hoje em feiras livres.
Intoxicação, erosão, monotonia. Está mesmo valendo a pena?
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro