Por quem (e como) os sinos dobram?

As atividades criativas a que chamamos de artísticas, e todo o complexo de valores, sensibilidades e práticas que as sustenta, são objeto da investigação antropológica desde o começo do século 20. Na obra dos sociólogos alemães Georg Simmel e Max Weber já se encontravam importantes análises do modo como a música ocidental se estruturava e se relacionava com as demais dimensões da organização social.

Considera nosso senso comum que a experiência artística expressa mais diretamente os sentimentos e emoções do que outras áreas da atividade humana; o que é matéria de muita discussão e dissenso, já que não há uma definição universalmente válida do que seja ‘emoção’. Tampouco da fronteira possível entre o sensível, o sentimental e o cognitivo – tão elaborada em nossa cultura e tão fundamental para as argumentações internas ao mundo artístico.

As manifestações musicais – imensamente variadas como são – conservam aquele aguilhão profundo que, como se diz, “atinge a alma”

É mais adequado ao pensamento antropológico considerar que a experiência artística, tal como definida pela cultura ocidental, relaciona-se com as áreas de máxima intensidade vivencial; é inseparável, na maior parte das culturas, do que chamamos de ritual, seja na forma contrita do religioso, por um lado, ou na forma lúdica dos lazeres, por outro. Mesmo que, entre nós, a música, por exemplo, tenha se afastado do campo específico da religião, suas manifestações – imensamente variadas como são – conservam aquele aguilhão profundo que, como se diz, “atinge a alma”. Esse era um dos sentidos dos sinos na cristandade.

A antropologia brasileira tem abrigado importantes desenvolvimentos na área da antropologia da arte – ou da música, mais especificamente. Por dolorosa coincidência, três personagens importantes desse campo vieram recentemente a interromper suas atividades: Santuza Naves e Gilberto Velho faleceram neste último mês e Elizabeth Travassos foi jogada em um estado grave de inconsciência por um acidente hospitalar, de que padece desde o fim de 2011.

Luiz Fernando Dias Duarte e colegas
Luiz Fernando Dias Duarte (à esquerda, abaixado), ao lado de colegas, entre eles, Gilberto Velho (sentado), Santuza Naves (à direita, de blusa branca) e Elizabeth Travassos (no centro, abaixada), após aula magna proferida por Velho no Museu Nacional/UFRJ em 30 de junho de 2010. (foto: Arquivo pessoal do colunista)

Santuza havia feito seu mestrado com Velho, a respeito de Caetano Veloso e a Tropicália. Elizabeth fez seu doutorado também com ele, sobre o modernismo musical e seu interesse nas tradições populares, comparando o compositor brasileiro Mário de Andrade com o húngaro Béla Bartók. Velho, entre tantas facetas criativas, dedicou-se à pesquisa sobre o papel da arte nas sociedades urbanas contemporâneas, tendo publicado já em 1977 uma instigante coletânea sobre ‘arte e sociedade’. Nesse volume combinavam-se três tendências de análise que continuam caracterizando o campo: a histórica, a sociológica e a etnológica.

A história social dos fenômenos artísticos na cultura ocidental é um pano de fundo essencial para compreender os fenômenos da atualidade; assim como é essencial para o olhar antropológico sobre as outras culturas humanas e os fatos que ali parecem equivalentes à nossa arte. Esta última tendência abriga o campo bastante autônomo da etnomusicologia. O leitor interessado no que haja aí de mais recente pode consultar o programa do atual curso de Carlos Fausto e Tommaso Montagnani no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Vários estudos, um mestre

Gilberto Velho orientou muitas outras teses dedicadas à pesquisa sobre fenômenos musicais: as de Hermano Vianna sobre o mundo funk e sobre o samba como música representativa da nacionalidade, a de Pedro Leite Lopes sobre o heavy metal, as de Sandra Costa sobre o hip-hop carioca e sobre as carreiras populares de músico, a de Caio Dias sobre Tom Jobim, a de Mila Burns sobre Dona Ivone Lara, a de Roberta Ceva sobre o forró universitário. Esses trabalhos, assim como muitos outros dessa seara dedicados à arte e à cultura, buscavam compreender os sentidos sociais de tais fenômenos, articulando-os com as condições de organização social e espírito cultural de seu tempo e lugar.

Samba
Gilberto Velho orientou várias pesquisas sobre fenômenos musicais, entre eles, o samba. (foto: Naty Torres/ Flickr – CC BY-NC-ND 2.0)

Na tradição seguida por Velho é muito forte o aporte da escola norte-americana do ‘interacionismo simbólico’, particularmente na figura do sociólogo Howard Becker – também músico de jazz –, que desenvolveu o conceito de ‘mundos artísticos’, ou seja, a constituição de grupos ou redes de sujeitos vinculados à prática da arte. Esses mundos se caracterizam pela especificidade dos estilos de vida ali cultivados; com o desenvolvimento de um sentimento de comunhão peculiar, regras práticas, disposições éticas, e até mesmo formas próprias de cultivar o conflito e a competição. Velho explorou as relações contemporâneas desses mundos no Brasil com o fenômeno dos ‘comportamentos desviantes’, como o consumo de drogas ou a homossexualidade.

A conotação de transgressão de que se cercou no Ocidente a vanguarda artística desde o romantismo é uma das marcas mais vívidas desse mundo – o que tem sido tratado por numerosos autores, interessados na sua correlação com a racionalização, com o individualismo, com a interiorização; enfim, com as linhas mestras da modernidade ocidental. Um ponto importante é o da associação da atividade artística com uma qualidade de verdade subjetiva, chamada de ‘autenticidade’, que tanto pode se expressar no plano pessoal, do artista criador, quanto no plano coletivo, da expressão de uma ‘alma nacional’.

Saber como dobram os sinos, qual o sentido do mundo de experiências em que passamos imersos na vida, é a dura tarefa dos antropólogos

É interessante destacar que os trabalhos de Travassos e de Naves, embora com estilos diferentes, enfrentaram questões comuns da relação entre música e nação. Suas próprias teses, já citadas, moviam-se no âmbito do desafio de articulação entre o modernismo artístico e a modernização nacional. E seus trabalhos posteriores continuaram a frequentar essa linha fundamental de exploração do sentido da música brasileira: no caso de Travassos, o estudo das tradições orais e do patrimônio cultural; no de Naves, o da música popular brasileira e da contracultura, por exemplo.

Como disse o poeta inglês John Donne em 1624, os sinos, quando dobram, dobram sempre por todos nós, servos da morte. Saber como dobram, qual o sentido do mundo de experiências em que passamos imersos na vida, é a dura tarefa dos antropólogos; mesmo quando acabrunhados pela perda de colegas tão caros.

Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Sugestões para leitura
TRAVASSOS, Elizabeth. Os mandarins milagrosos: arte e etnografia em Mário de Andrade e Béla Bartók. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

TRAVASSOS, Elizabeth. Modernismo e música brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

NAVES, Santuza C.. O violão azul: modernismo e música popular. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998.

NAVES, Santuza C.. Da bossa nova à tropicália. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

VELHO, Gilberto (org.). Arte e Sociedade: ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.