O mundo dos negócios, e em particular o dos negócios com petróleo e gás, ficou alvoroçado com a 11ª rodada de licitações que a Agência Nacional do Petróleo (ANP) realizou em 14 e 15 de maio, ofertando 289 blocos para exploração de petróleo no mar, dos quais chamam a atenção os 170 situados na chamada margem equatorial, um filé-mignon de dimensões continentais, que vai do Rio Grande do Norte ao Amapá. Os blocos estão a distâncias de 60 a 100 km da costa e os que mais preocupam em termos ambientais são os 97 ao largo do Amapá, na foz do Amazonas, e os seis da Bacia Pará-Maranhão, a noroeste de São Luís.
De fato, não faltam motivos para preocupação de ordem ambiental, tanto dentro como fora do país. Em função de seu gigantesco caudal, o Amazonas é o único rio do mundo a possuir um estuário que se projeta para dentro do oceano. Sua pluma de água doce e sedimentos penetra de 100 a 200 km mar adentro e as correntes oceânicas desviam essa massa d´água para noroeste, seguindo o litoral da Guiana Francesa, Guiana Inglesa, Suriname e Venezuela.
Isto significa que todo vazamento de petróleo nessas áreas recém-licitadas afetará diretamente o litoral dos países citados. O Ministério de Relações Exteriores da França não perdeu tempo e já expressou formalmente sua preocupação com o tema. O da Venezuela, bem, deixa pra lá, está ocupadíssimo ultimamente.
No front interno, a preocupação decorre do fato de essas duas regiões próximas à foz do Amazonas possuírem um litoral repleto de áreas de unidades de conservação, intensa atividade pesqueira no talude continental, biodiversidade elevada e pouco documentada, fartos santuários ecológicos, como o Parcel de Manuel Luis no litoral do Maranhão – um dos maiores bancos de coral do país –, e virtual ausência de dados primários locais que permitam modelar a dispersão de eventuais vazamentos de óleo.
Se você consultar um mapa da região, verá também que a mesma tem uma das mais extensas faixas contínuas de manguezais do planeta e uma das mais precárias infraestruturas em terra (ou em lama, nas áreas de mangue).
De onde zarparão as valorosas equipes de emergência quando algo der errado? Não sei. Podemos garantir que não teremos pororocas inflamáveis subindo pelo Amazonas? Não sei. As empresas que levarem os blocos vão conseguir as licenças ambientais para iniciar a exploração? Também não sei. Supõe-se que serão exigidos levantamentos de dados locais, que podem demorar bastante a serem obtidos. Mas supõe-se também que não se licitam áreas para exploração para depois impedir seu uso, não é mesmo?
Tudo isto parece mesmo muito precipitado e arriscado. Mas, por enquanto, prevaleceu a euforia com a injeção de cerca de 10 bilhões de reais na economia nos próximos anos apenas para a primeira fase exploratória dos blocos arrematados nessa rodada. Faltou orçar o custo das novas emissões de gases de efeito estufa e dos acidentes que não deixarão de ocorrer aqui e ali, mas os setores de vendas, comunicação e marketing acharam que não seria uma boa ideia, pelo menos não agora. Afinal, a política do fato consumado vem dando certo. Cria-se um fato econômico-financeiro-creditício primeiro, arranjam-se as licenças ambientais depois.
Revolução energética?
Mas se você achou que licitar para exploração petrolífera áreas remotas de nosso litoral, sem infraestrutura e com parcos dados oceanográficos, talvez seja temerário, aperte o cinto, porque há coisa pior por vir. Já ouviu falar do gás de xisto? Não? Pois acorde, ele está a caminho. Já recebeu diversos nomes chiques, como gás onshore (em terra) – para distingui-lo do gás offshore, extraído da plataforma continental – e gás natural não convencional. Bota não convencional nisso!
Como o próprio nome sugere, esse gás está associado a depósitos de xisto. Alguns preferem chamá-lo de gás de folhelho. Como todo depósito mineral, o xisto está distribuído de forma heterogênea na crosta terrestre. No Brasil, segundo estimativas da ANP, as reservas desse gás poderiam alcançar 17 trilhões de metros cúbicos e por isso mesmo estariam no forno novos leilões para licitação de áreas terrestres no país para a exploração dessa nova promessa energética.
É fascinante observar o circo midiático que está sendo montado para apresentar essa suposta revolução energética. Matérias e editoriais se sucedem, apontando a expressiva redução dos custos do gás nos EUA e Canadá em função da entrada do gás de xisto no cenário energético local.
E não faltam menções à independência energética que ele poderá garantir. Mas faltam, sim, lembretes de que isto só foi possível por conta dos ventos desreguladores em ambos os países, que abrandaram as exigências ambientais, e ainda por conta de uma geologia favorável, que não se repete necessariamente em outros locais do planeta.
A China, sempre ela, deu nova sacudida no mercado informando que descobriu reservas de gás de xisto que poderiam ter rendimento superior ao das jazidas dos EUA. O problema é justamente o tempo verbal: essas reservas estão em áreas remotas, onde não há água suficiente para proceder à extração do gás.
Ainda assim a China prevê produzir cerca de 6,5 bilhões de metros cúbicos de gás de xisto em 2015. Muitos analistas acham que é delírio, outros, pura fantasia, e me pergunto o que diriam das previsões da ANP de 17 trilhões de metros cúbicos desse gás no subsolo brasileiro.
Mas a Petrobras está revendo sua carteira de projetos, atraída pelo potencial dessa nova fonte de energia fóssil e já vislumbra polos de produção de amônia e ureia no Centro-oeste para alavancar o agronegócio. A presidente da empresa, em sua aula inaugural durante as comemorações pelos 50 anos da Coppe/UFRJ, deu destaque ao gás de xisto e declarou: “Se existir esse gás, nós vamos produzir”. Epa, então na verdade não sabemos direito se ele está mesmo lá? É o que parece, mas não há nada de novo nisto, o mercado é movido por expectativas mais do que por fatos.
Tiro no pé?
Mas vamos aos fatos. Que diabo de gás de xisto é este? Por que ele só deu as caras agora? E por que os ambientalistas não têm a menor estima por ele?
O xisto é um mineral que assume estrutura folheada em função de forças tectônicas, assim como a massa folheada assume essa estrutura pela pressão vigorosa de um rolo de madeira. Se o xisto é betuminoso e rico em matéria orgânica, conterá óleo e gás entre as camadas desse mil-folhas mineral, geralmente situado a 3-4 km de profundidade.
O problema é justamente como extrair o gás e, se este frequenta o noticiário de uns anos para cá, é porque a tecnologia de extração evoluiu bastante. Esta envolve a chamada fratura hidráulica, em que se injeta grande quantidade de água sob alta pressão para romper as camadas que aprisionam o gás.
Para maior eficiência do processo, adiciona-se à água um coquetel de compostos químicos cuja composição as empresas não revelam nem sob tortura. Cerca de metade da água injetada é recuperada e estocada em lagoas de decantação, onde não dá para colocar um pesque-e-pague e nem mesmo um pedalinho e que podem infiltrar, vazar e romper.
Obviamente, a probabilidade de contaminação do lençol freático com hidrocarbonetos é elevadíssima. Ora, direis, eles já estavam lá. Ora, respondo, não misturados à água, estavam dormindo em seus casulos selados até mexermos com o que estava quieto. Diante disto, extrair petróleo e gás em águas profundas, mesmo às profundidades telúricas do pré-sal, parece muito seguro e razoável.
Fala sério, contaminar águas e litorais com óleo não é nada bom, mas ninguém bebe água do mar e sempre dá para pescar em outro canto enquanto a área contaminada se recupera, lenta e gradualmente. Mas contaminar com hidrocarbonetos reservas subterrâneas de água doce, sabendo que os poços não produzirão mais de 20 anos, parece suicida.
Note que eu não disse que seria tiro no pé, afinal, pode dar fagulha e iremos todos pelos ares.
Mas o clima é dado pela atual campanha de mídia de nossa maior petroleira: “Para os desafios de hoje, a energia de sempre”. Entendemos, é um autoelogio. Mas é também uma confissão: a energia de sempre é a de ontem. Portanto, a mensagem fala de presente e de passado, mas cala sobre o amanhã. É atrozmente coerente, já que estamos de fato agindo como se não houvesse amanhã.
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro