No dia 08 de outubro de 2012, John Gurdon e Shinya Yamanaka foram agraciados com o Prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia pela descoberta de que células maduras podem ser reprogramadas para se tornarem pluripotentes, ou seja, capazes de dar origem a qualquer tipo de tecido do corpo.
Sir John Gurdon, cientista inglês de cabeleira inconfundível, quase desistiu da carreira, ao ser desencorajado por uma professora de ciências quando só tinha 15 anos. Gurdon demonstrou ser possível clonar um vertebrado inteiro a partir das informações genéticas de uma célula adulta. Em 1958, ele transplantou o núcleo de uma célula da pele de uma rã africana conhecida como Xenopus laevis em um ovo recém-fertilizado de outra rã da mesma espécie, cujo núcleo fora previamente removido. Clonou a rã e demonstrou que o genoma de uma célula somática pode ser reprogramado.
O japonês Shinya Yamanaka é um médico de formação que optou pela carreira científica tão logo percebeu sua pouca habilidade como cirurgião ortopédico. Teve que passar por seleções para 50 laboratórios até ser aceito no Instituto Gladstone dos Estados Unidos para um pós-doutoramento que durou três anos.
Na época, Yamanaka estudava uma forma de reduzir o colesterol e o risco associado de ataques cardíacos em camundongos. O método de Yamanaka não somente foi incapaz de reduzir o colesterol, mas aumentou o risco de formação de tumores no fígado desses animais. Essa experiência malsucedida não desanimou o cientista, que retornou ao seu país de origem determinado a continuar fazendo pesquisas científicas. Foi quando passou a estudar células-tronco. E o que surgiu a partir daí é história.
Reprogramação celular é tema recorrente nesta coluna, não apenas pela simplicidade da técnica, mas principalmente pelas possibilidades que oferece para a ciência. É impressionante notar a velocidade com que novas aplicações surgem a partir do conhecimento gerado por Gurdon e Yamanaka.
Veja vídeo (em inglês) que mostra como ocorre a reprogramação de uma célula da pele
Avanços contra a síndrome de Down
Em artigo publicado no dia 18 de outubro na revista Cell Stem Cell, cientistas liderados por David Russell na Universidade de Washington (Seattle, Estados Unidos) foram capazes de corrigir, pela primeira vez, a principal característica da síndrome da Down: a trissomia do cromossomo 21.
Os portadores da síndrome de Down têm uma cópia extra do cromossomo 21 em todas as suas células. Estas comportam-se de forma diferente de células normais (diploides) e, como consequência, comprometem o desenvolvimento e funcionamento do organismo.
Os autores geraram células-tronco de pluripotência induzida (chamadas de iPS) a partir de fibroblastos de seis portadores da síndrome de Down e confirmaram que essas células possuíam de fato três cópias do cromossomo 21. Em seguida, transferiram para essas células trissômicas um gene capaz de interferir na sua capacidade de sobrevivência, gerando uma pressão seletiva para sua eliminação.
Obedecendo à seleção natural de Darwin, as células que perderam espontaneamente a cópia extra do cromossomo 21 sobreviveram e começaram a proliferar de forma mais rápida que as trissômicas. Dessa forma, teve origem uma nova população de células, agora com duas cópias do cromossomo 21.
Ao comparar a expressão gênica dessas duas populações de células, os pesquisadores verificaram uma desregulação de alguns genes nas trissômicas, incluindo o gene da alfa actina 2. Alterações nesse gene causam sabidamente anormalidades vasculares e podem explicar as malformações observadas no coração das pessoas com síndrome de Down.
Aplicação prática
A eliminação da terceira cópia do cromossomo 21 tem uma aplicação prática evidente. Portadores da síndrome de Down apresentam atraso mental, fraqueza muscular, baixa estatura, envelhecimento precoce e anomalias cardíacas.
Como se não bastasse, pessoas com síndrome de Down têm uma incidência aumentada de leucemia: 10 a 20 vezes superior à observada no restante da população.
A correção da trissomia poderá ser testada inicialmente para tratar a leucemia desses pacientes, por meio de transplante de células desses indivíduos livres da cópia extra do cromossomo 21 e seus efeitos pró-leucêmicos.
Nunca é demais lembrar que a única terapia celular reconhecidamente eficaz é o transplante de medula óssea. O responsável pelo seu desenvolvimento, o médico estadunidense Edward Donnall Thomas, faleceu nesta semana, aos 92 anos de idade.
Atualmente transplantes de novos tipos celulares, incluindo células-tronco neurais, mesenquimais, embrionárias e reprogramadas, começam a ser testados em seres humanos.
Há 50 anos, quando o trabalho de Thomas começava a ser avaliado em pacientes, ninguém imaginava quanto tempo levaria até que a sociedade pudesse realmente usufruir dessa técnica, na época tão controversa. Desde então, o transplante de medula óssea já beneficiou pelo menos um milhão de pessoas em todo o mundo.
Quais serão as terapias com células-tronco daqui a 50 anos? Ninguém sabe. Mas é muito provável que a medicina do futuro tenha como um de seus protagonistas a reprogramação celular. Graças à persistência de John Gurdon e Shinya Yamanaka, que não se deixaram abater pelas intempéries da vida acadêmica.
Stevens Rehen
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro