Quando a eletrônica se une à biologia

Aqui neste espaço, já enveredamos algumas vezes pelo campo da eletrônica orgânica (veja as colunas de março de 2009, dezembro de 2009 e maio de 2012).   Mas alguns leitores mais atentos têm solicitado uma espécie de descrição do estado da arte dessa importante área da tecnologia contemporânea. É o que tentaremos fazer agora.

O termo popularmente conhecido como eletrônica – e seus derivativos com os prefixos ‘micro’ e ‘nano’ – abrangia originalmente um conjunto de dispositivos à base de silício ou, mais geralmente, à base de semicondutores inorgânicos.

A descoberta dos polímeros condutores abriu as portas para o que é hoje conhecido como eletrônica molecular

Mas o privilégio desses materiais começou a ser ameaçado em meados dos anos 1970, quando o químico estadunidense Alan MacDiarmid (1927-2007), o químico japonês Kideki Shirakawa (1936-), o físico estadunidense Alan J. Heeger (1936-) e seus colaboradores descobriram os polímeros condutores. Pela façanha, os três ganharam o Prêmio Nobel de Química de 2000 e abriram as portas para o que é hoje conhecido como eletrônica molecular ou orgânica.

Trata-se de uma história belíssima, com desdobramentos tecnológicos impressionantes, mas com uma amplitude grande demais para ser inteiramente tratada aqui, o que nos coloca na difícil situação de priorizar alguns polímeros ou aplicações tecnológicas específicas.

Polímeros condutores

Um material, qualquer que seja sua natureza, conduz eletricidade quando dispõe de elétrons livres para isso. Os polímeros convencionais e todos os plásticos não conduzem eletricidade porque todos seus elétrons são usados nas ligações químicas, tecnicamente conhecidas como ligações covalentes. Ou seja, para se manterem unidos na constituição do material, os átomos compartilham seus elétrons com os vizinhos.

Ligação covalente
Nos polímeros convencionais, os átomos estão unidos uns aos outros por meio de ligações químicas conhecidas como covalentes, em que os elétrons (esferas pretas) de um átomo são compartilhados com os vizinhos. (foto: Wikimedia Commons)

O compartilhamento eletrônico é uma característica básica dos materiais, mas nos condutores alguns elétrons ficam livres e zanzam pra lá e pra cá. Já nos materiais dielétricos ou isolantes, todos os elétrons são utilizados nas ligações covalentes. Os semicondutores podem se passar por dielétricos ou por condutores, dependendo de estímulos externos, como a temperatura ou a aplicação de um campo elétrico. No caso desses materiais, alguns elétrons são fracamente presos às ligações covalentes e conduzem eletricidade quando os estímulos externos são suficientemente fortes.

Foi isso que, em experimentos de rara beleza e simplicidade, os ganhadores do Nobel de Química de 2000 descobriram em amostras de poliacetileno dopadas com cloro, bromo, iodo ou pentafluoreto de arsênio. Nesses materiais, hoje conhecidos como polímeros conjugados, as ligações químicas permitem que um elétron fique desemparelhado e pronto para pular de um átomo para o vizinho, estabelecendo o mecanismo da condutividade elétrica.

Para se ter ideia do impacto causado pela descoberta, basta observar que, no período entre 1980 e 1990, a base de dados sobre estudos científicos Web of Science registra mais publicações sobre polímeros condutores (880) do que sobre materiais magnéticos (826), um dos carros-chefe da indústria eletrônica.

Grande impacto e aplicabilidade

Existem várias possibilidades de uso dos polímeros condutores. Mas o nosso foco aqui será a evolução de uma área de alto impacto científico e tecnológico, com inúmeras aplicações na medicina: as pesquisas com biossensores eletrônicos. Trata-se de dispositivos que contêm um elemento biológico sensível ao que se deseja monitorar integrado ou associado a um transdutor físico-químico. Esse transdutor transforma o efeito bioquímico que ocorre no elemento biológico sensível em um sinal elétrico mensurável.

Biossensor para video game
Biossensor produzido pela empresa japonesa Seta como acessório do ‘video game’ Nintendo 64 para o jogo Tetris 64. O dispositivo mede a frequência cardíaca do usuário e, com base nesses dados, aumenta ou diminui a velocidade do jogo. (foto: Wikimedia Commons/ Timkovski)

Um dos primeiros biossensores eletrônicos foi inventado pelo bioquímico estadunidense Leland C. Clark Jr. (1918-2005) e pelo microbiologista estadunidense Champ Lyons (1907-1965) no início dos anos 1960, para medir níveis de glicose durante uma cirurgia cardiovascular. Sua simplicidade facilitava a fabricação de dispositivos compactos, mas exigia altas voltagens para apresentar bons resultados.

Como sempre ocorre, tais limitações promoveram uma corrida em busca de sistemas mais eficazes, desembocando, no início dos anos 1980, nos atuais biossensores à base de transistores orgânicos. Esses biossensores de última geração são dispositivos que podem ser miniaturizados em escala nanométrica e permitem a amplificação e o controle do sinal de entrada resultante da reação bioquímica entre o sensor biológico e o material que se deseja monitorar.

Parte importante da arte e da ciência para a obtenção de bons dispositivos reside na boa escolha dos materiais e na forma como são montados

O caminho rumo aos transistores orgânicos é, de certo modo, muito similar àquele seguido pelos pesquisadores da microeletrônica, que, na segunda metade do século passado, desenvolveram o MOSFET, o mais famoso transistor à base de silício. Os dois dispositivos são muito parecidos. Ambos têm três contatos externos (fonte, dreno e porta), uma camada de material semicondutor e outra de material isolante.

Parte importante da arte e da ciência para a obtenção de bons dispositivos reside na boa escolha dos materiais e na forma como são montados. Foi assim no caso dos transistores inorgânicos e também está sendo no de seus sucedâneos orgânicos – os transistores eletroquímicos orgânicos (OECT, na sigla em inglês), os transistores orgânicos de efeito de campo (OFET) e os transistores orgânicos de efeito de campo com porta eletrolítica (EGOFET).

O sucessor do silício

Assim como o silício nos transistores inorgânicos, o polímero polietilenodioxitiofeno dopado com poliestireno sulfonado, conhecido como PEDOT:PSS, é atualmente o semicondutor da moda na confecção de transistores orgânicos.

Esse polímero entrou na história por volta do ano 2000, como elemento ativo em diodos emissores de luz orgânicos (OLED), já comercializados pela empresa japonesa Pioneer em 1997 com outros tipos de polímeros. Em 2004, ele passou a ser testado em células solares orgânicas flexíveis.

Embora tais aplicações sejam de grande importância científica, tecnológica e comercial, a entrada triunfal do PEDOT:PSS no universo da eletrônica orgânica se deu mesmo com a sua utilização na confecção de transistores de filmes finos inteiramente orgânicos.

Transistor orgânico
Transistor orgânico flexível de alta performance desenvolvido por pesquisadores das universidades de Stanford e da Califórnia em Los Angeles (Estados Unidos). (foto: Universidade de Stanford)

Esses transistores podem ter as mesmas funções dos transistores de silício, mas atendem a uma grande demanda por dispositivos baratos, que podem ser produzidos tanto em escala nanométrica, quanto montados em grandes painéis. Além disso, são processados em temperaturas inferiores àquelas usadas na produção de chips de silício.

O conhecedor da literatura sobre eletrônica molecular sabe que esse relato é apenas uma pequena parte da história. É a parte que emergiu em função da escolha arbitrária do colunista. Mesmo em relação aos biossensores, ainda há muito o que falar. Não mencionamos, por exemplo, os diferentes tipos de reações bioquímicas detectadas pelos diversos biossensores, como a detecção de vírus por meio de análise de DNA, nem as alternativas ao PEDOT:PSS.

A eletrônica molecular representa uma mudança de paradigma que nos permitiu entrar genuinamente no mundo da nanociência

Além disso, a eletrônica molecular abrange muito mais do que esses dispositivos. Na verdade, ela representa uma mudança de paradigma que nos permitiu entrar genuinamente no mundo da nanociência.

Nesse sentido, não podemos esquecer os esforços para a obtenção de dispositivos úteis para o que hoje se denomina computação molecular. O objetivo é desenvolver arranjos artificiais que operem de modo inspirado no funcionamento do DNA. Também não podemos deixar de falar da enorme área de pesquisa com outros tipos de materiais orgânicos, como os nanotubos de carbono e o grafeno, que vêm ultimamente sendo testados na confecção de nanotransistores.

Mas isso já seria assunto para uma outra coluna…

Carlos Alberto dos Santos
Professor-visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana