Há poucos dias, procurou o Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) o ministro Carlos Alberto Menezes Direito, do Supremo Tribunal Federal (STF). Ele queria conversar com pesquisadores sobre o polêmico assunto da pesquisa com células-tronco embrionárias.
A foto mostra um blastocisto humano de cinco dias. O aglomerado de células à esquerda é a fonte das células-tronco embrionárias, capazes de gerar neurônios, células cardíacas, cutâneas e de outros tecidos (foto: Centro Avançado de Fertilidade de Chicago, EUA).
Como todos sabem, esse tema foi regulamentado pela Lei de Biossegurança recentemente aprovada pelo Congresso Nacional, mas sofre questionamento de inconstitucionalidade por parte do Procurador-Geral da República, e está em julgamento no STF. A questão sob análise do STF é se a retirada das células-tronco de um blastocisto humano (embrião de poucos dias) representaria um atentado à vida.
Queria saber o ministro: quando começa e quando acaba a vida humana? A pergunta é simples e direta, mas a resposta, não. Os biólogos sabem que a vida é um contínuo permanente, que se transfere de uma célula a outra e de um indivíduo a outro. Nunca começa e nunca acaba. Uma célula que se divide transfere a sua vida para as duas células-filhas. Do mesmo modo, a vida humana se perpetua através dos tempos, pois os indivíduos se reproduzem e a transferem a seus descendentes.
Seria mais produtivo, talvez, mudar o foco da pergunta: quando começa e quando acaba a vida de um indivíduo humano? Nesse caso, é preciso primeiro definir o que é um indivíduo humano, o que o diferencia de outros seres da natureza. Parece natural considerarmos que um ser humano se caracteriza por sua construção e por suas capacidades particulares.
Não só a forma de nossos corpos ou o modo de funcionamento de nossos órgãos, mas, acima de tudo, o especial desempenho de nosso cérebro. O cérebro, então, capaz de possibilitar a emergência da mente, seria o diferencial que nos faz humanos.
A morte do cérebro é o fim do indivíduo?
Decorre desse conceito o modo como determinamos o momento da morte, também ela uma lenta transição. A morte é o fim do indivíduo. O problema é que ela não ocorre de uma vez só – morremos aos poucos, algumas células antes, outras depois; alguns órgãos antes que outros. De qualquer modo, é a morte do cérebro – a interrupção irreversível de sua função – que aceitamos como o marco definidor dessa transição.
E, como também o cérebro morre aos poucos, consideramos a morte do córtex cerebral como o momento em que falece o indivíduo, porque com ele se vão também a razão, a emoção, a memória e a consciência. Nosso córtex encerra nossa humanidade. A morte do córtex pode ser detectada por instrumentos que registram a sua atividade elétrica, o fluxo sangüíneo das suas artérias e a atividade metabólica dos seus neurônios. Detectada tecnicamente a morte cerebral, não se pode garantir que não haja retorno do indivíduo a uma vida consciente, embora exista uma probabilidade muito baixa de que isso ocorra.
Sendo tão remota a probabilidade de retorno, parece ética e juridicamente aceitável utilizar os órgãos (ainda vivos) do indivíduo morto para transplantes que salvam vidas de outros seres humanos.
O nascimento do cérebro é o início do indivíduo?
Se a morte do cérebro é o fim do indivíduo, seria aceitável considerarmos a formação do sistema nervoso como o início da existência de um ser humano? Tudo indica que sim, mas há considerações a fazer. Nesse caso, a neurociência não pode ainda determinar em que momento emergem as capacidades mentais que caracterizam os seres humanos.
O sistema nervoso humano surge como uma placa que se dobra, formando um tubo, por volta da terceira semana de gestação (foto: Universidade de Utah, EUA).
A formação do cérebro no embrião ocorre gradualmente – não se trata tampouco de um evento súbito. A partir do blastocisto implantado no útero materno, vai-se formando um embrião mais complexo que, por volta de 15-20 dias de gestação, apresenta uma placa em uma das extremidades, cujas bordas vão se dobrando sobre si mesmas para formar um tubo: o tubo neural. Esse é o primeiro momento em que se pode identificar um precursor do cérebro no embrião.
O tubo neural é formado por células precursoras que ainda não são neurônios. Embora se comuniquem quimicamente, essas células ainda não são capazes de gerar sinais bioelétricos de informação, como os neurônios maduros. Elas tampouco formam redes ou circuitos, o que indica que, a essa altura, estão longe ainda de apresentar as características fundamentais da mente humana.
Diversos laboratórios em todo o mundo se dedicam a estudar o desenvolvimento normal do sistema nervoso, entre eles o meu próprio, na UFRJ. Sabemos que as células precursoras dos neurônios atravessam uma fase de acelerada proliferação a partir da terceira semana de gestação. Em seguida, elas se movimentam em várias direções para ocupar o lugar que lhes caberá no cérebro maduro e, só mais tarde, começam a emitir os prolongamentos que constituem os circuitos neurais e possibilitam a complexa comunicação entre os neurônios.
De volta ao dilema
O que está em discussão no STF, portanto, é a utilização de células-tronco derivadas de embriões humanos de poucos dias, distantes várias semanas dos primeiros estágios em que se poderia identificar a emergência da mente. Não parece justificado supor que, nessa fase, o embrião constitua de fato um indivíduo humano.
O objetivo das pesquisas propostas pelos cientistas com essas células é desenvolver técnicas de “fabricação” de tecidos e órgãos, que possam ser utilizadas futuramente para o tratamento de doenças. Por simetria, o problema ético que se coloca neste caso é similar ao dilema que enfrentamos para decidir se devemos empregar em transplantes órgãos provenientes de pessoas vitimadas por morte cerebral.
A ciência não é capaz de determinar uma nítida linha demarcadora do início e do fim da vida de um indivíduo. Mas é certo que a linha fixada pelos legisladores e pela sociedade na Lei de Biossegurança está longe de ferir a essência e a dignidade do indivíduo humano. Muito pelo contrário, a ciência encontra-se hoje próxima de possibilitar uma verdadeira revolução no tratamento das doenças, aproximando-se dos objetivos éticos mais sublimes de nossa civilização: prolongar a vida, minorar o sofrimento e ampliar o bem-estar dos seres humanos.
SUGESTÕES PARA LEITURA
Gazzaniga, M.S. (2005) The Ethical Brain. Nova York: Dana Press, 201 pp.
Rehen, S. K. e Paulsen, B. S. (2007) Células-Tronco: O que são? Para que servem? Rio de Janeiro: Vieira & Lent Casa Editorial, 96 pp.
Uziel, D. (2008) O desenvolvimento do sistema nervoso. Cap. 3 do livro Neurociência da Mente e do Comportamento. (R. Lent, coord.). Rio de Janeiro: Editora Guanabara-Koogan, pp. 19-42.
Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
25/04/2008