A Você é daqueles que gostam de tirar uma sonequinha depois do almoço, mas sempre sentiu uma pontinha de culpa por se permitir esse prazer? Parabéns, a neurociência acaba de lhe arranjar a desculpa perfeita: o que era considerado preguiça hoje é uma maneira cientificamente comprovada — e quase tão boa quanto uma boa noite inteira de sono — de ajudar o cérebro a aprender. Principalmente se a sua soneca incluir uns bons 20 minutos de sonhos.
A novidade vem da equipe do neurocientista Robert Stickgold, da Universidade Harvard (EUA). Em estudo publicado em julho de 2002 na revista Nature Neuroscience , o grupo havia demonstrado que o treino repetido em uma tarefa simples de identificação visual faz com que o desempenho acabe deteriorando, ao invés de melhorar cada vez mais — e o culpado é o cérebro, que vai ficando cansado. Quem toca um instrumento musical deve conhecer o problema: treino demais num dia só pode ser frustrante, à medida que, com o excesso, os dedos parecem até desaprender a lição.
No estudo de 2002, os pesquisadores davam a dica, por sinal já conhecida de vários aspirantes a concertista: uma soneca rápida de 30 minutos após o treino é suficiente para evitar que o desempenho continue piorando com o exercício. E se a soneca for de uma hora inteira, o desempenho na tarefa visual testada no estudo volta a ser tão bom quanto antes do treino começar. Mas melhora, mesmo, só no dia seguinte — depois que os voluntários dormiam uma noite inteira bem dormida. Sem uma noite de sono, nada de aprendizado.
O que uma noite de sono tem que a soneca não tem? Um novo estudo do mesmo grupo mostra agora que a diferença entre a soneca fazer o desempenho parar de piorar, voltar à estaca zero ou até começar a melhorar pode ser uma questão de tempo de sono — e de sonhos. Desta vez, os 45 voluntários puderam puxar um soninho de 60 ou até 90 minutos após o treino na mesma tarefa visual usada no estudo anterior: identificar a orientação de pequenas barrinhas em um dos cantos da tela do computador. Como antes, 60 minutos de sono não pareceram fazer mais do que restaurar o nível inicial de desempenho. Mas 90 minutos foram suficientes para que o mesmo tempo de treino já produzisse melhoras, antes mesmo de uma noite inteira de sono.
A diferença, no entanto, não é uma simples questão de 30 minutos adicionais de sono. Enquanto quase sempre se sonha durante cochilos de 90 minutos, sonecas de uma hora podem incluir um período de sonhos ou não. E aqui está a diferença: se o cochilo após o treino inclui alguns minutos de sonhos, o desempenho na tarefa treinada não só deixa de piorar a seguir como até começa a melhorar — e ainda no mesmo dia, antes de uma noite inteira de sono.
Stickgold e seus colaboradores já supunham que os efeitos benéficos do sono noturno para o aprendizado vêm da alternância de ciclos de sono com e sem sonhos ao longo da noite. Sua nova descoberta, relatada na Nature Neuroscience de junho de 2003, confirma a importância da combinação dessas duas fases do sono. Talvez o sono sem sonhos sirva como um ’restaurador’ do funcionamento do cérebro, pré-requisito para que na fase seguinte, com sonhos, ocorram as modificações necessárias para que o aprendizado se instale.
Mas um cochilo recheado de sonhos pode ser ainda mais interessante. No novo estudo, quem chegou a sonhar durante o cochilo e ainda dormiu à noite teve no dia seguinte um desempenho ainda melhor do que os voluntários que tiveram direito a uma noite normal de sono após o treino, sem cochilos. Isso indica que os benefícios de sonecas diurnas e sonos noturnos são aditivos. Na verdade, na interpretação dos autores, uma soneca à tarde seguida de uma noite de sono pode ser tão benéfica ao aprendizado quanto duas noites seguidas de sono.
E tem mais: quem chegou a sonhar durante o cochilo ficou com o desempenho tão bom já no mesmo dia quanto quem não tirou uma soneca mas depois dormiu uma noite inteira, até ser testado no dia seguinte. A tentação, é claro, é dizer que um cochilo de 90 minutos, desde que seja entremeado de sonhos, é tão bom quanto uma noite inteira de sono.
Em matéria de aprendizado, pode até ser. Mas em matéria de descanso ou de conforto… eu não troco uma noite inteira na minha caminha, com o meu travesseirinho, por cochilo nenhum!
Mednick SC, Nakayama K, Cantero JL, Atienza M, Levin AA, Pathak N, Stickgold R (2002). The restorative effect of naps on perceptual deterioration. Nature Neuroscience 5, 677-681.
Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia