Questão de gênero

Em 1975, a Revista Brasileira de Linguística publicou artigo em que o linguista canadense (com formação norte-americana) John Martin apresentava argumentos que faziam duvidar da existência do masculino em português. Essa tese, aliás, já havia sido antecipada pelo linguista brasileiro Joaquim Mattoso Câmara Jr. (1904-1970).

John Martin apresentava argumentos que faziam duvidar da existência do masculino em português

A ideia de Martin é simples e engenhosa. Como bom cientista, ele considera os fatos, faceta fundamental do gramático. Seu método é o dos gerativistas de então: propõe construções, verifica sua gramaticalidade e, finalmente, busca um princípio explicativo.

Martin parte da constatação de que, se não houvesse o fenômeno sintático da concordância, não haveria razão para falar de gênero em português (como não há em inglês). O primeiro passo é, pois, ‘provar’ de novo que existe concordância e, portanto, gênero. Propõe fatos simples (o asterisco indica uma construção inexistente, agramatical, isto é, que não segue as regras da língua):

(1) Pedro é alto.
(1′) *Pedro é alta.
(2) Maria é alta.
(2′) *Maria é alto.

O resultado da análise desse pequeno corpus confirma a existência da regra de concordância: ‘Pedro’ exige ‘alto’, ‘Maria’ exige ‘alta’. Quando essa regra é aplicada, as sentenças são gramaticais: (1) e (2); quando não aplicada, o resultado são construções inexistentes em português:  (1′) e (2′).

Se esses dados representassem todos os fatos do tipo na língua, poderiam ser explicados pela seguinte hipótese: quando o sujeito é masculino, o predicativo vai para o masculino; quando o sujeito é feminino, o predicativo vai para o feminino. Isto é, palavras concordam com outras em gênero. É a regra tradicional que conhecemos.

Feminino e masculino
O linguista canadense John Martin defendeu, em artigo publicado em 1975, a inexistência da divisão entre masculino e feminino em português, ideia já antecipada pelo linguista brasileiro Joaquim Mattoso Câmara Jr. (imagem: Leo Reynolds/ Flickr – CC BY-NC-SA 2.0)

Mas há outros fatos não considerados explicitamente na tradição gramatical. Por exemplo:

(3) Está cheio de meninos na praia.
(3′) *Está cheia de meninos na praia.

(3) é uma sentença do português, mas (3′) não é (no máximo, talvez ocorra na fala de um alemão ou americano que esteja aprendendo português). A pergunta é: com qual sujeito concorda ‘cheio’? E por que a forma ‘cheia’ não pode ocorrer na construção?

A sentença (3) pode ser considerada sinônima de ‘a praia está cheia de meninos’ (quando ‘cheia’ concorda com ‘praia’) ou de ‘meninos enchem a praia’. Mas isso não explica a concordância em (3), nem o fato de que (3′) é estranha à língua. O argumento fica ainda mais forte se introduzirmos outro dado:

(4) Está cheio de laranja na geladeira.

Em que as palavras ‘laranja’ e ‘geladeira’ poderiam ser hipotéticas candidatas a receber uma concordância de ‘cheio’ (isto é, ‘cheia’), mas não recebem, como se vê pela agramaticalidade de

(4′) *Está cheia de laranja na geladeira.

A frase (4′) é agramatical (‘a geladeira está cheia de laranja’ é uma frase sinônima de (4), mas é sintaticamente diferente).

Quando a oração não tem sujeito, o predicativo vai para o masculino

Martin introduz então outra hipótese: quando a oração não tem sujeito, o predicativo vai para o masculino. Essa hipótese pode ser testada com outros fatos, que parecem confirmá-la. Vejamos:

(5a) Faz frio (*faz fria)
(5b) Aqui está gelado (*aqui está gelada)
(5c) Hoje choveu feio (*hoje choveu feia) etc.

Mas, diz Martin, afirmar que um predicativo concorda com ‘nada’, e que ‘nada’ coincide com masculino, é uma estranha maneira de defender uma regra de concordância. Na verdade, seria uma regra ad hoc (sem generalidade, destinada apenas a salvar uma hipótese com pouco fundamento), pecado grave para um cientista.

Outra hipótese é que o feminino concorda com feminino e que o masculino concorda com masculino e também com ‘nada’. Mas essa tese daria início a uma lista, não produz uma regra ou lei.

Além de haver predicativos masculinos concordando com nomes masculinos e com nada (em frases sem sujeito do tipo ‘aqui faz frio’), também se encontram predicativos masculinos em outros contextos sintáticos, como, por exemplo, na sequência

(6) Uma cerveja seria ótimo,

dita em um contexto como ‘Com um calor desses, uma cerveja seria ótimo’. A sequência (6) pode ser interpretada como ‘tomar uma cerveja seria ótimo’, na qual alguns elementos estariam elípticos. Mas, se tais elementos forem recuperados (‘tomar’ uma cerveja…), vê-se logo que não são nomes masculinos. Apesar disso, qualquer leitor concordará que sequências como

(7) *Uma cerveja seria ótima.
(8) *Tomar uma cerveja seria ótima.

são estranhas em português.

Relembremos os argumentos. Há claramente concordância de predicativo no feminino em frases como ‘Maria é alta’. Mas há predicativos masculinos tanto em casos como ‘Pedro é alto’, quanto em ‘Está cheio de laranja na geladeira’, ‘Aqui é bom’ e ‘Tomar uma cerveja seria ótimo’.

Nicolau Copérnico
Para refutar a ideia de que há gêneros diferentes em português, o linguista John Martin fez como o astrônomo Nicolau Copérnico (que afirmou que a Terra girava em torno do Sol): propôs uma nova teoria. (imagem: Wikimedia Commons)

Para explicar os três últimos casos, teríamos que aceitar uma regra muito estranha: os predicativos concordam no feminino com nomes femininos e concordam no masculino em três casos: a) quando se ligam a nomes masculinos; b) quando não se ligam a nada; c) quando se ligam a orações (plenas ou com elementos elípticos).

O que fazer para explicar tais fenômenos? O melhor é fazer como o astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), guardadas as proporções: começar de outro lugar, mudar de hipótese. Foi o que fez John Martin.

Propôs que não há divisão entre masculino e feminino. E que a divisão correta é entre marca de gênero e ausência de marca de gênero.

Os nomes com marca de gênero, em português, coincidem exatamente com os que estamos acostumados a considerar femininos. Os outros casos, todos, seriam considerados sem gênero (inclusive os nomes considerados masculinos).

Vantagens

Parece evidente que se pode aceitar que não há marca de gênero no sujeito quando não há sujeito (como em ‘está frio’). Provavelmente ninguém teria problemas em deixar de considerar masculinas as orações subjetivas (‘navegar é preciso’, ‘tomar uma cerveja seria bom’ etc.).

Resta convencer ‘estudiosos’ de que nomes considerados masculinos, na verdade, são apenas um dos casos de ausência de feminino, ou seja, de ausência de marca de gênero.

Quais seriam as vantagens? Do ponto de vista científico, várias. Na sintaxe, pelas razões expostas, uma só regra explicaria todos os casos: só há concordância quando o elemento a ser flexionado se liga ao feminino.

Resta convencer ‘estudiosos’ de que nomes considerados masculinos, na verdade, são apenas um dos casos de ausência de feminino, ou seja, de ausência de marca de gênero

Nos outros casos, a palavra que sofreria concordância não recebe marca alguma (não concorda). Ou seja: em ‘Pedro é alto’ não há concordância. As duas palavras envolvidas na questão continuam sem receber marcas, em estado de dicionário, isto é, antes de ocorrerem efetivamente em um enunciado.

Outra consequência, na verdade, redundante, é que a forma básica dos nomes (e dos adjetivos) não é marcada quanto ao gênero. Assim, ‘menino’, ‘sapato’ etc. são apenas formas sem marca de gênero (e não com marca de masculino).

O ‘o’ final de ‘menino’ e de ‘todo’, por exemplo, não é marca de masculino, mas uma vogal temática, cuja função é classificar palavras, como o fazem as vogais temáticas dos verbos. O que explica também a função de outras formas finais: ‘presidente’/‘infante’ têm vogal temática ‘e’, o que implica que as formas femininas correspondentes são irregulares… (relembre-se de ‘presidenta’/‘infanta’, mas ‘*estudanta’).

Se, por um lado, ‘o’ não é marca de masculino, ‘a’, por outro, é marca de feminino, mas apenas quando acrescentada a uma base não marcada. Assim, a regra que sempre estudamos passa a fazer sentido: construímos formas femininas acrescentando um ‘a’ à base da palavra (e eliminando o ‘o’ /‘e’ etc., o que é outra regra geral).

Mas não parece bobagem falar de formas sem marca de gênero? Não! As palavras ditas masculinas são de fato não marcadas. É por isso que dizemos ‘o circo tem dez leões’ mesmo que tenha cinco leões e cinco leoas, mas não dizemos, no mesmo caso, que tem dez leoas. Também é por isso que se pode dizer que ‘todos nascem iguais em direitos…’, o que inclui as mulheres, mas não se incluiriam os homens se a forma fosse ‘todas nascem iguais em direitos…’.

Como se vê, a hipótese seria vantajosa também na morfologia. E coerente, em ambos os domínios. Outro efeito, não desprezível: não veríamos mais machismo onde não há, e ficaria claro que saudar ‘todos e todas’ é apenas uma decisão política. 

Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas